PAULIANA VALENTE PIMENTEL, FARO-OESTE
Exposição na Galeria Quadrum, no complexo dos Coruchéus, em Lisboa, de 27 de abril a 25 de junho de 2023.
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Em 2019, Pauliana Valente Pimentel começou a retratar algumas famílias da comunidade cigana algarvia, sobretudo na zona de Castro Marim e Vila Real de Santo António:
A minha intenção com este projecto foi a de retratar estas comunidades, alargando o território para as zonas de Faro, Loulé e Boliqueime, nomeadamente os acampamentos Cerro do Bruxo, Horta da Areia, Alto do Relógio e Monte João Preto. Este trabalho pretende mostrar o dia a dia destas famílias, dando ênfase às suas tradições, com o intuito de combater preconceitos e estereótipos racistas e xenófobos de que são constantemente alvo.
Deste trabalho, surgiu a exposição FARO-OESTE, que foi inicialmente mostrada, em 2021 e 2022, no Museu Municipal de Faro e no Centro Cultural de Lagos, e produzida a convite e no âmbito da 10ª edição do Festival Verão Azul e que se apresenta agora, noutra versão desta série.
As cordas estão atadas entre os pilares da galeria, cruzam-se por vezes. Habitualmente no exterior, servem para pendurar roupa. Aqui, no interior da Galeria Quadrum, às cordas fixam as molas que seguram os panos, os tecidos, suporte da impressão das fotografias de Pauliana Valente Pimentel. Penduradas como roupa a secar, em cordas habitualmente atadas a árvores.
Caminhamos entre os tecidos, entre as fotografias, como se percorrêssemos o acampamento.
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Na folha de sala da exposição, lemos o ensaio de Pedro Pousada:
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NO REINO DOS SEM TERRA
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Na captação do aparente, o ato fotográfico encontra-se frente a frente com o ato poético. São concomitantes, mas não necessariamente iguais. Fazer soar na imaginação o sino da realidade e fazer reverberar na realidade os ritmos dissonantes da imaginação não é a mesma coisa, mas pode tornar-se a mesma circunstância. O corolário do “saber fazer” inventa a estética do ato, mas não dispõe dos recursos todos: a energia estética do nomeado, do apontado, do “alvejado” – aquela criança, aquela mulher, aquele idoso, aquele cão – é outra força em jogo. O que fica do sujeito-objeto na fotografia é muita coisa: o seu lado espectral, inacabado, dissolvido na fluidez dos dias; o que fica é o silêncio opaco do irrepresentável. Porque em cada representação há essa perda; há a consciência de que o mundo vivido possui regiões em que a imagem é apenas a confissão de uma incompletude.
O realismo poético-documental, o plein-air da série fotográfica “Faro-Oeste” da artista Pauliana Pimentel é disso exemplo. A captação não é só fruto da intuição especializada e da mecânica do dispositivo, mas é o espaço para a “conspiração” do olhar ponderado, contemplativo que ainda consegue ser reflexivo e, por isso, vai, a sangue-frio e quente, hierarquizar, excluir, segregar, acentuar, escolher. E, assim, colocar ao alcance de um espectador multitudinário e indeterminado, um mundo reconhecível e dissonante, fazendo-o, porém, sem qualquer essencialismo e sem conseguir superar a distância e a opacidade que tornarão a fotógrafa e o espectador sempre estranhos a esse mundo.
A invasão fotográfica tem um caráter revelador. Sentimo-nos diferentes, por vezes irreconhecíveis, quando nos vemos como imagens. Surpreendemo-nos (ou desiludimo-nos, agora incessantemente com a pulsão “selfie”) porque vemos o nosso corpo, e residualmente a nossa mente, ali, fora de nós, descolados para sempre daquilo que conhecemos de nós próprios quando olhamos para nós sem imagens e sem reflexos. Imagino que estas pessoas pouco habituadas a serem imagens – mas muito habituadas a serem indesejáveis – tenham tido reações curiosas aos resultados da poética quase analítica, quase intuitiva, mas decididamente meiga, da Pauliana.
Nestas fotos pressentimos aquela empatia simultaneamente perscrutante e discreta que podemos remontar a Un enterrement à Ornans (1849-1850), de Gustave Courbet, e que nos revela como a (sobre)vida é bela e difícil e como aqueles que estão dentro dela lutam quotidianamente para tornar as suas vidas menos assustadoras, menos grotescas e absurdas.
É isso que aqui vemos, no colorismo melancólico sem drama e sem juízo moral das fotografias da Pauliana. A fotografia (e o seu mundo) transformando a banalidade quotidiana de uma comunidade cigana num testemunho biopolítico contraditório.
A contradição inescapável e fundacional deste testemunho, do testemunho da Pauliana, é que ele questiona o significado da exceção (onde cabe ela, onde sobrevive ela neste mundo padronizado e normativo?). Questiona-o no vale de lágrimas e de sorrisos de uma das exterioridades mais liminares e polarizadas da vida moderna: uma comunidade cigana perdida nas bordas do Algarve turístico, entalada entre o desalento rural e o paroxismo da urbanização sem urbanidade.
Aquela é uma porção da vida moderna que, através de signos, de símbolos, de presenças sem pose, de criatividade sem hierarquias, nos diz que quer sair para fora do mundo que a oprime, que a exclui, mas ainda não sabe como, e talvez nunca venha a saber. Sim, quer sair desse mundo que não descansa em reduzir-nos a produtores-consumidores atomizados, isolados, inofensivos.
Mas como é que uma comunidade cigana pobre, vulnerável, impotente e despolitizada pode querer sair do mundo que a rejeitou?
Onde é que está, naquele ecossistema de escassez, naqueles olhares e corpos cheios de delicadeza e incerteza, a prova desse querer que já é, em si, uma potência política?
Tal como os palestinianos eternizados nos seus campos de refugiados, estes seres humanos, estes portugueses recusados, constroem a sua soberania estética, “trabalham”, com muito pouco, “sobre si mesmos”.
Olhamos para aquelas salas provisórias em cabanas improvisadas com plásticos, tapumes, madeiras várias, aquele afeto e cuidado estético pelas poucas coisas que se possuem e percebemos que tudo ali é heroico porque é sobrevivente, porque, ali, possuir um objeto, um cobertor ou uma cadeira e guardá-lo, transportá-lo e voltar a retirá-lo das malas, dos sacos, das carroças, montar a casa ou limpá-la é já um ato político antes de ser um ato cultural. É um ato político segurar uma vassoura num lugar onde os elementos são mais fortes e a entropia acontece depressa demais. E, de repente, aquelas subjetividades não são apenas referentes de um modo frágil de viver, mas a vontade, o livre-arbítrio que sobrevive num gesto de utilidade doméstica e que luta contra a reificação, contra a sujidade de um mundo sombrio sem horizontes; que luta com roupa estendida ao sol ou arrumada e dobrada, com panelas lavadas, areadas e penduradas em tabiques precários, com cadeiras e bancos e sofás de diferentes nações e origens reunidos em círculo, junto ao fogo a unir as pessoas na fala, a unir –como nós, entrançados numa corda – as diferentes subjetividades no acordo e na discórdia.
Se este mundo onde estamos parece cada vez mais aproximar-se do fim e, ao mesmo tempo, parece que nunca mais acaba, talvez estas vidas nos possam ensinar o equilibrismo de existir de outra forma mais livre, mais despreocupada (ou é tudo ilusão? Fantasia da minha cabeça? Será que o medo do futuro se esconde naqueles olhares?). Sim, podem ensinar-nos, mas é provável que não aprendamos porque é assustador e desconfortável e agressivo um mundo sem nada. É essa também a contradição: ali está a humanidade que não deixam ser livre porque os portões da cidade estão fechados e, deste lado, onde estamos, está a humanidade que não consegue ser livre porque os portões da cidade estão sempre abertos, mas com hipoteca e crédito malparado. Entre elas não haverá reconciliação porque uma quer deixar de ser a exceção e a outra quer deixar de ser a norma.
As fotografias da Pauliana também nos dizem que o mundo é demasiado perigoso, demasiado permeável à intolerância e ao preconceito para nos darmos ao luxo de ignorar a alteridade. É preciso perceber que, para sair deste círculo vicioso da pobreza sistémica, da crise da crise da crise, do existir apenas para trabalhar, também podemos pegar nestas formas de existência para reconstruirmos a singularidade coletiva para além de e sem a mediocridade da nossa condição de mercadoria.
Ela escreve com luz e caldo fotoquímico sobre a matéria aparente, uma nova exterioridade que devolve ao nomadismo pobre destes ciganos a irrealidade e a intimidade que a ordem burguesa lhes confisca todos os dias, e é nesse intervalo que nos apercebemos daquilo que não conseguimos ser.
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António Bracons, Aspetos da exposição, 2023
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“FARO-OESTE”, da artista/fotógrafa Pauliana Valente Pimentel, esteve em exposição na Galeria Quadrum, no complexo dos Coruchéus, bairro de Alvalade, em Lisboa, de 27 de abril a 25 de junho de 2023.
Só em vésperas de terminar, visitei esta exposição da Pauliana Valente Pimentel. Apesar de agora já terminada, não quis deixar de a trazer aqui.
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Pauliana Valente Pimentel (1975. Lisboa). Como artista visual faz exposições regulares desde 1999. Em 2005, participou no curso de fotografia do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística. Pertenceu ao colectivo [Kameraphoto] desde 2006 até à sua extinção em 2014. É professora de fotografia autoral. Em 2009 foi publicado o seu primeiro livro de autora “VOL I” (Pierre von Kleist), “Caucase, Souvenirs de Voyage” (Fundação Calouste Gulbenkian) em 2011, em 2018 “Quel Pedra” (Camera Infinita), e em 2019 “Narcisismo das Pequenas Diferenças” (Arquivo Municipal da Câmara de Lisboa). Realiza também filmes. Em 2015 recebeu o prémio de Artes Visuais pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em 2016 foi nomeada para o Prémio NOVO BANCO Photo. Esteve durante 5 anos representada na Galeria 3+1 Arte Contemporânea e 7 anos na Galeria das Salgadeiras, em Lisboa. Atualmente pertence à Galeria Cisterna em Lisboa e colabora com galerias internacionais. Parte da sua obra pertence a colecionadores privados e institucionais.
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Pode conhecer mais sobre a obra de Pauliana Valente Pimentel no FF, aqui.
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