RENATO MONTEIRO E MARIA MIRANDA, NÓMADAS

Exposição no Arquivo Municipal de Loures de 08.04 a 18.06.2022.

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Renato Monteiro

Nómadas

Fotografia: Renato Monteiro, Maria Miranda / Texto: Sónia Ferreira, Filomena Cunha, Rui Fabião

Loures: Câmara Municipal de Loures / Abril . 2022  

Português / 20.9 x 29.5 cm / 82 pp. Não numeradas

Brochura

ISBN: nd

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Então, trato de as fixar com a objetiva, do mesmo modo que os pombos da rua pousam na minha varanda da frente. Como se aquele ato fosse a coisa mais natural do mundo, e não é!

Renato Monteiro

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Esta exposição reúne fotografias a preto e branco de Renato Monteiro, de uma comunidade de etnia cigana no seu acampamento, mostrando a vivência informal, só possível por quem foi aceite e acolhido na comunidade. Não é um olhar de fora, mas um olhar de dentro. E numa vivência nómada da comunidade, hoje já (quase) inexistente, quer por vontade das próprias famílias, quer da ação das políticas públicas de habitação.

Percebemos o acampamento, mas o que hoje nos é mostrado é o quotidiano das famílias, especialmente das mulheres e crianças.

Completa a exposição um conjunto de fotografias a cores, de Maria Miranda, de um casamento cigano, no lugar da Lagoinha, em Palmela, no ano 2008.

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Filomena Cunha, curadora da exposição, optou por apresentar a exposição de uma forma diferente, recorrendo à vivência e costumes do acampamento, à roupa pendurada nos estendais, cordas esticadas entre árvores ou outras estruturas, que um pau mantém elevado do chão: as fotografias estão impressas em grande formato, em tecido, penduradas em estendais instalados na galeria, com molas da roupa de madeira.

A fotografia, como a roupa, faz parte do quotidiano.

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Filomena Cunha escreve o ensaio sobre a exposição:

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Se fotografar é uma forma de apropriação da coisa observada e vivida, mantendo uma relação de conhecimento com o mundo, a imagem escolhida para reter “aquele” momento é uma interpretação do mundo, um recorte apurado e preciso, transparente e seletivo da realidade, que Renato Monteiro e Maria Miranda souberam preservar esteticamente para registo e memória do olhar.

O que nos chega pela imagem é a impressão concentrada de várias camadas de realidade, que transmite a profunda sensibilidade e consciência do fotógrafo, numa visão particular de tributo e importância, através do uso social e da consciência da fotografia como arte.

O posicionamento do fotógrafo situa-se entre a arte clássica e tradicional do retrato a preto e branco, a pesquisa antropológica mais particular e o registo do jornalístico, onde o perscrutar das características do grupo e a tentativa de captar a essência do indivíduo, acentuando traços identificativos da vivência da cigana, são bem assumidos, celebrando e reafirmando simbolicamente a continuidade do grupo.

(…) O percurso que vai da pintura de género intimista, quotidiana, à fotografia do espaço de vivência destas famílias, honrosamente retratadas no espaço quotidiano e que se alarga para o campo aberto, que se transforma no espaço alargado da intimidade, do exterior, da ocupação e apropriação temporária de um espaço que se inaugura e instaura, como se da criação do mundo se tratasse, onde se fundam as bases da sociabilidade, da casa e da família.

Um contínuo processo de recomeços, onde a criação, num tempo ritual e circular, se alia à partilha do espaço, como se o tempo fosse da ordem do eterno, envolto na repetição dos gestos, hábitos e tradições. Ritmos e vivências sob a condição de renovados recomeços, ao ritmo da mudança cíclica das estações, da natureza, ou da adaptação de sobrevivência às contingências sociais do lugar.

Fotografar a vida, o quotidiano dos espaços de liberdade, onde o tempo da captura da imagem é o tempo da vivência e da experiência partilhada no plano existencial, temporal, ritual e mítico.

O espaço de vivência é um não lugar, de não pertença — espaço de passagem, por ocupação, cedência ou empréstimo, onde a existência se manifesta num estar a caminho, sem sentimento de posse, num espaço aberto de vivência plena de liberdade, escolha e mudança.

A fatia de história parece deixar rasto através de um trilho nómada, onde se partilha um modo existencial, de ser e estar no espaço, como se fosse um contínuo linear, ou fixado num tempo ritual e circular, envolto na repetição de gestos, hábitos e tradições.

As imagens denunciam a captação do fragmento da vivência quotidiana, de um olhar, onde a alma, partilhada e enraizada na realidade se confessa. Há uma nova perceção do conteúdo e do conceito de família, numa elevação do olhar, do fazer comum ao estatuto e condição estética.

A crónica visual permite, pela imagem, documentar um testemunho do grupo, do indivíduo, onde se celebra e reafirma, simbolicamente, a existência e participação ativa do núcleo familiar, bem como a posse sobre o espaço transformado.

Por todas a imagens atravessa a consciente intenção (sem moralismos) da captura do momento comum, não encenado, da família, do indivíduo, do grupo, desvelando uma ancestralidade que atravessa a linha do tempo e se potencia e atualiza no momento presente. Os intervenientes não são apanhados desprevenidos, há familiaridade, cumplicidade e tempo para o conhecimento e o consentimento. (…) com o fotógrafo que, através do olhar não crítico, regista a captação do sopro da existência, com uma permissão para abandonar a superfície e perscrutar níveis mais profundos das camadas da alma, níveis de ser e de essência, cujos ecos nos interrogam com a cumplicidade do olhar orgulhoso e digno, do gesto de alegria e rebeldia, característico da etnia cigana.

Nesta mostra optamos por evidenciar e eleger o olhar do fotógrafo sobre o feminino e a infância, dentro do grupo que incorpora diversas vicissitudes e características de um ser e estar enquadrado na fronteira e na diferença, mas que nos devolve um olhar empoderado, livre, irreverente, feliz, ostentando a dignidade e o orgulho, como “forma de resistência à segregação provocada peta cultura dominante”.

Não há questionamento ou crítica, há apenas registo de conhecimento sentimental e humanista de partilha e dádiva. A evidência de um paradigma social no feminino, sem qualquer juízo de valor, mas longe de ser uma observação passiva, evidencia, sobretudo, cumplicidade e interesse, sem apropriação, mas partilha, comunhão e proximidade; olhá-las como elas não conseguem e conhecê-las como elas não podem, para além de as elevar e transformar num objeto estético que não tem de ser possuído, mas apenas partilhado.

(…) A sua aproximação ao objeto, não é feita de incursões fugazes, mas que exige um trabalho paciente e dedicado na tessitura das relações.

A postura do fotografado viaja num crescendo entre o espanto, a surpresa, o consentimento, a permissão, a cumplicidade e a partilha, a naturalidade, o orgulho e a abertura da intimidade.

(…) Captar/capturar o momento da dádiva, onde a “janela da alma” se nos oferecesse numa comunhão de proximidade, encontro e partilha de sentimentos e emoções comuns a todos.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2022

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Rui Fabião escreve sobre o fotógrafo:

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O Renato

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Quando consegui falar com o Renato da exposição sobre os ciganos, já a tinha visto duas vezes. Disse-lhe: “É irónico que o teu – de longe! – melhor trabalho seja o único que não acaba em livro.”

Todos os projetos anteriores aos ciganos tinham acabado assim — exposição e livro. Só os ciganos não tiveram livro — apesar da exposição. Porque o Renato fotografava para o livro. Não que reivindicasse para si essa forma de trabalhar: achava é que era assim que toda a gente devia fazer.

(…) Lembro-me da conversa, quando arrancaram os trabalhos da Expo 98 e tudo começou. O Renato veio ter comigo e disse-me: “Isto vai ser a maior transformação de Lisboa do último século; quem sabe, se do próximo! É preciso documentar e registar esta mudança.” Pôs-se a fotografar as obras, insistentemente; e a pensar no livro: ainda não havia Expo e já havia Metamorfoses.

Esta arqueologia por antecipação esteve muito nítida nas primeiras coisas que o Renato fez: o Parque das Nações, claro; mas também a demolição da Musgueira; e a aldeia da Luz, em vésperas de ser engolida pelo Alqueva… Menos nítida, aflorava ainda noutras coisas tardias.

Para mim, a formação académica do Renato justificou durante uns tempos este desassossego por o que baloiça à beira do efémero: era a inquietação do historiador face à voragem do tempo, a vertigem em ‘documentar e registar’ a mudança, de modo a patenteá-la aos vindouros & etc. (…)

Mas não é isso. Aquilo que as fotos do Renato preservam não são as coisas olhadas: são um modo particular de olhar as coisas. As suas imagens não dizem “Olhem para isto, que é importante!” (também dizem; mas é pouco e em voz baixa), dizem, sobretudo, “Vejam estas coisas assim, porque é importante olhá-las desta forma”

(A fotografia é o avesso do suposto provérbio oriental: aqui, não interessa a Lua, o que interessa é o dedo que aponta.)

O Renato e eu fomos idiotas proverbiais: estávamos sempre a preferir dedos a luas. Mas que é o fotógrafo, sendo aquele que, no meio da molhada e olhando para onde a molhada olha, vê uma coisa diferente? (…)

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Renato Monteiro e Maria Miranda, Nómadas, 2022

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A exposição “Nómadas”, com fotografia de Renato Monteiro e Maria Miranda, está em exposição no Arquivo Municipal de Loures, na R. Cesário Verde, em Loures, de 8 de abril a 18 de junho de 2022.

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Renato Monteiro. Nasceu no Porto, em 12 de janeiro de 1946. Falece em Lisboa, a 8 de julho de 2021.

Realizou programas de índole cultural, enquanto colaborador de rádio, durante cerca de três anos.

Desenvolveu trabalhos de redação e de reportagem fotográfica em projetos editoriais. Professor de História, no Ensino Secundário, tem promovido a fotografia, através de ações de formação, colóquios e exposições. Dedica-se ao desenvolvimento de projetos fotográficos optando pela película a preto e branco, em detrimento do emprego, quase exclusivo, do diapositivo a cores.

Entre inúmeros trabalhos empreendidos, deve salientar-se os centrados nos espaços urbanos ou rurais, submetidos a configurações urbanísticas, às metamorfoses ocorridas em bairros periféricos ou ao registo do quotidiano de grupos e comunidades, procurando fixar aspetos identitários, geográficos e humanos presentes na etnia cigana, nas margens do estuário do Tejo ou na atividade específica da prática da arte xávega.

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Margarida Miranda. Nasceu em Lisboa, em 1947.

Licenciada em filosofia, com uma pós-graduação em Comportamento e Mudança Organizacional, trabalhou em áreas ligadas ao ensino, à formação e à gestão de recursos humanos.

Autodidata na fotografia, procura, mais do que congelar instantes, utilizar a imagem como uma outra forma de escrita. Estórias, momentos de prazer ou de desprazer, vivenciados de novo quando a memória a atraiçoa, ou divulgados num blogue onde, talvez, só os amigos espreitem.

Não se diferencia, assim, de muitos cidadãos que fazem da câmara fotográfica uma companhia e que, despretenciosamente, continuam a acrescentar à vida o olhar da fotografia.

A pequena mostra de retratos, aqui patente, é um exemplo disso. E ainda uma modesta homenagem à etnia cigana, em festa de casamento, no lugar da Lagoinha, em Palmela, ocorrido no ano 2008.

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Outros trabalhos de Renato Monteiro no FF, aqui.

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