ALFREDO CUNHA, LEICA YEARS. 50 ANOS DE FOTOGRAFIA

Exposição em Lisboa, na Casa da Imprensa, de de 13 de Abril a 3 de Junho de 2022.

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A Casa da Imprensa acolhe a exposição “Leica years. 50 anos de fotografia”, de Alfredo Cunha. Ao longo de meio século, o fotojornalista registou Portugal: a história e a vida do país, a vivência das pessoas simples e dos vultos, as suas histórias, tempos de trabalho e de lazer, momentos únicos. E o Mundo: desde a independência das antigas colónias às gentes, vivências, culturas – as pessoas – dos vários continentes. As imagens sucedem-se, recentes e mais antigas juntas, de diferentes lugares, sempre o preto e o branco, com origem em película ou em digital… Como diz Teresa Siza, “O tempo e o lugar não contam. As imagens são o tempo e o lugar.”

Instantes de 50 anos do mundo e de Portugal, sobretudo do norte de Portugal, onde vive. Porque a fotografia é, sobretudo, sobre a vida. E uma vida cheia!

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Alfredo Cunha, Amadora, anos 1970 – Moçambique, anos 1990 – Amadora, 2020.

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Esta exposição tem origem no livro de Alfredo Cunha, “Leica years. 50 anos de fotografia”, que dá o nome à exposição. No livro – e na folha de sala – escreve Teresa Siza:

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Simbiose

O tempo e o lugar não contam.

As imagens são o tempo e o lugar.

Este Alfredo Cunha de quem se fala é o homem com a sua câmara e o seu olhar. Qualquer bom fotojornalista, e é assim que o conhecemos, intui, antes de o saber claramente, que uma imagem, que deve encerrar todo um conteúdo e uma sedução, é, sempre foi, um momento decisivo. Antes de ser definido, de forma elegante, por Cartier-Bresson, já existia na mente de quem fotografa o acontecimento, o rosto e o movimento.

(…)

Na longa carreira de 50 anos de Alfredo Cunha, muita coisa mudou: o país que fotografa; o equipamento que usa — já longe da primeiríssima Petri FT, da Leica M3, que começou a usar em 1973, e das Leicas que se seguiram e a que se manteve sempre fiel; o suporte — do analógico, maioritariamente preto e branco, ao digital, que pratica desde 2003. A sua prática estendeu-se à edição, o que lhe permitiu olhar para os outros e definir com clareza o seu próprio caminho. Mas o fotojornalismo continua a ser a sua linguagem preferencial: o seu olhar depurou-se, mas não se alterou substancialmente.

A imagem fotojornalística responde à exigência de concordância com o texto, também se liga ao onde, quando, como e porquê.

Porém, quando o fotógrafo já definiu o seu estilo — e é esse o caso de Alfredo Cunha desde muito cedo na sua carreira —, a sedução da imagem sobrepõe-se à sedução da notícia; nesta seleção reencontramos muitas das suas imagens icónicas, aquelas que de imediato reconhecemos como suas: o rapaz do cesto de uvas, na vindima, o homem rudemente esforçado da faina do mar, carregando o cordame, para dar apenas dois exemplos. Em todas elas se torna difícil associar a imagem a um estilo, hábito fácil do comentador, pois Alfredo Cunha, reconhecendo o tempo e a sua estética, ultrapassa a corrente do momento e o tema. E é neste sentido que podemos dizer, com Barthes, que as suas fotografias resultam sem código, dependem da transmissão do seu para nosso afecto.

Esta é, portanto, uma seleção do autor. Como todos os fotógrafos sabem, cada imagem tem uma história pessoal, uma evocação que a rodeia e ultrapassa, e que só o autor pode conhecer. Vemos como Alfredo Cunha salienta os temas do Portugal profundo, sempre em transformação, mas sempre preciso, o contexto do trabalho rural em aldeias perdidas de abandono, o pastoreio, a apanha ainda feudal dos ramos caídos que burros carregam penosamente, as pequenas oficinas, as festas, a procissão e a banda de música, com um cut preciso sobre o homem comum, o momento, o retrato, o grupo. São imagens de valor sociológico, da austeridade dos padres em estudo, das freiras disponíveis para um qualquer bem-fazer, das cerimónias em Vila Verde, dos barcos engalanados de modo arcaico, das esperas da camionete, entre vales e montes, das profissões que persistem (os fabricantes de sinos), ou daquelas muito novas e terríveis, os respigadores, nomeadamente mulheres e crianças. Há ainda os grupos militares, as manifestações e os comícios, os momentos de luta, no país, em África ou no Médio Oriente; ou a praia, os miúdos agressivos sob um graffiti do MRPP; as barracas e os refugiados, a morte e a vida, temas diversificados que exigem o preto e branco para uma imprensa diária imediata e melancólica. Os temas são a história de uma vida e de muitas vidas, sem sequência cronológica, como flashes da memória, recuperações e alertas.

Mas Alfredo Cunha também selecciona as imagens tecnicamente inesperadas: aquela jovem focada no interior de vultos mais indecisos, que nos surge como um vulcão de luz; as claramente definidas, fotos à Doisneau na escola, o quadro negro mantendo o problema de redução de centímetros a metro e, na borda, a fileira de bonecos, prontos para um teatro de fantoches.

Ou a escola da Casa do Gaiato em Moçambique. E os despojos, como o navio gigante adornado e erodido ou aquele doente num hospital de cuidados mínimos, onde o lençol esfiado e roto está cuidadosamente alisado sobre a manta.

E há o retrato, o tocador de guitarra, a lindíssima jovem africana envolta no manto escuro, a moça gótica e destemida, a outra jovem com um vago desenho sob os olhos; rostos de homens perdidos no tempo, cansados ou fechados em si, ou aquele outro, na imagem bressoniana, que se encavalita sobre um dispositivo de incêndio.

É assim que se entende Alfredo Cunha, lendo-o nas imagens que captou e transfigurou em momentos de universalidade.

Ocorre-nos a Magnum, os humanistas fotográficos, de Brassaï a Doisneau, de Izis a Cartier-Bresson, os realistas americanos do quotidiano, o olhar de Capra ou Eugene Smith, mas é leitura nossa, tentativa de entender quem nasceu para ser fotógrafo e sempre soube unir-se com a sua câmara e explorá-la para lá dos seus programas: o maestro da banda que ficou sem cabeça, no momento decisivo do cut, o mar de guarda-chuvas, enquadrados pela balaustrada de pedra no seu ângulo tão real como virtual, aquele caminho sem fim que se desfila sob os arcobotantes da muralha, o tocador de flauta, o fumo do cigarro escondido volteando entre toques de luz e, porque não?, o gato interlocutor sobre o Volkswagen… ou aquele pequeno Narciso que se olha — de corpo inteiro? — na água. Não há aqui procura jornalística, o texto é inútil. O tempo e o lugar não contam.

As imagens são o tempo e o lugar, são pontos de encontro que nos ferem.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2022

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A exposição Alfredo Cunha, “Leica Years. 50 anos de Fotografia”, está patente em Lisboa, na Casa de Imprensa, na Rua da Horta Seca 20, de 13 de Abril a 3 de Junho de 2022. A 11 de maio teve lugar uma conversa com o autor e os jornalistas Ana Sousa Dias e Luís Pedro Nunes.

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Bruno Portela, Alfredo Cunha e António Bracons, 13.04.2022

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Alfredo Cunha nasceu em 1953, em Celorico da Beira.

Em 1970, iniciou a carreira profissional em fotografia publicitária e comercial; no ano seguinte, estreou-se como fotojornalista no jornal Notícias da Amadora. Colaborou com os jornais O Século e O Século Ilustrado, com a revista Vida Mundial, com a Agência Noticiosa Portuguesa – ANOP e com as agências Notícias de Portugal e Lusa.

Foi fotógrafo oficial dos presidentes da República Ramalho Eanes e Mário Soares, e recebeu a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique.

No jornal Público, foi editor fotográfico entre 1989 e 1997, e integrou o grupo Edipresse como fotógrafo e editor. Em 2000, começou a trabalhar na revista semanal Focus. Em 2002, colaborou com Ana Sousa Dias no programa televisivo Por Outro Lado, da RTP2. Entre 2003 e 2009, foi fotógrafo e editor do Jornal de Notícias. De 2010 a 2012, foi director fotográfico da Agência Global Imagens.

Actualmente, trabalha como freelancer e desenvolve vários projectos editoriais.

Do seu percurso, destacam-se as séries de fotografias dedicadas ao 25 de Abril de 1974, à descolonização portuguesa em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Cabo Verde, ao PREC (Processo Revolucionário em Curso, 1974-1975), à queda de Nicolae Ceausescu, na Roménia (1989), e à Guerra do Iraque (2003).

Publicou diversos livros de fotografia, entre os quais: Raízes da Nossa Força (1972), Vidas Alheias (1975), Disparos (1976), Naquele Tempo (1995), O Melhor Café (1996), Porto de Mar (1998), 77 Fotografias e Um Retrato (1999), Cidade das Pontes (2001), Cuidado com as Crianças (2003), Cortina dos Dias (2012), O Grande Incêndio do Chiado (2013), Os Rapazes dos Tanques (2014), Toda a Esperança do Mundo (2015), Felicidade (2016), Fátima, enquanto Houver Portugueses (2017), Mário Soares (2017), Retratos 1970-2018 (2018), O Tempo das Mulheres (2019), A Cidade Que não Existia (2020), Leica Years (2020), Dedicatória (2021), A Cidade das Pontes (2022).

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Pode conhecer mais sobre o trabalho de Alfredo Cunha no FF, aqui.

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