“A FAMÍLIA HUMANA” NO MUSEU DO NEO-REALISMO

Dia Internacional dos Museus

Uma exposição da Coleção Internacional de Fotografia do Museu do Neo-Realismo, criada por Jorge Calado, para ver no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, até 29.05.2022.

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O Museu do Neo-Realismo não é um museu de fotografia, mas pode ser um museu onde a fotografia desempenhe um papel importante, sem rival no panorama museológico português.

Jorge Calado, catálogo da exposição

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O Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira, apresenta a exposição “A Família Humana”, que ocupa todo o piso 2, mostrando cerca de um terço da coleção, o que em si é já um espantoso acervo. A Coleção de fotografia do Museu do Neo-Realismo foi criada e desenvolvida por Jorge Calado, que fez a curadoria da exposição e organizou o excelente catálogo.

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Mauricio Fresco, Esquina de Lisboa (Carmo) com cartaz de tourada, 1941/42 – Annemarie [Schwarzenbach] Clarac, Balcão de jornais e revistas, incluindo publicações nazis, na Lisboa movimentada (da série ‘Lisboa, Hoje’), 1942 – Jean Dieuzaide, Florista Ambulante, Lisboa, anos 50 – Claude Jacoby, Harpista numa rua de Dublin, agosto 1953 – Augusto Cabrita, Duas enfermeiras paraquedistas que prestam serviço em Angola, 1961

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Jorge Calado conta a génese da exposição na revista E do jornal Expresso ( n.º 2488 de 04.07.2020), com o título “A vida inteira”:

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Tudo começou com um artigo no Expresso. No outono de 2018 fui surpreendido em Nova Iorque por cinco (!) exposições de fotografia italiana cobrindo as três décadas do neorrealismo: prelúdio, apogeu e decadência, 1930-1960. Percebi então o esquecimento a que fora votada a fotografia italiana: o trabalho pessoal dos fotógrafos acabara abafado pelo seu envolvimento no cinema. Conhecíamos os nomes de De Sica, Rossellini, Fellini, etc., mas não os de Mario Carbone, Federico Pattelani ou Pierluigi Praturion, etc. (ver Expresso de 29 de dezembro de 2018). Nove meses depois — o tempo de uma gestação —, por intervenção da diretora científica, Raquel Henriques da Silva, e com o decisivo apoio da vereadora da cultura, Manuela Ralha, e do diretor-geral de cultura, Alexandre Sargento, começava a formar uma coleção de fotografia internacional supostamente neorrealista para o Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira. (Escrevo ‘supostamente’ porque não me quero aqui envolver em discussões estéreis sobre o que é ou não o neorrealismo.)

Os italianos sempre foram bons na chamada ‘Reconquista do Real’. No princípio do século XX, a ópera evoluí­ra do belcanto para o verismo, onde os personagens não são heróis nem aristocratas mas gente que luta e trabalha para viver. Até a célebre Floria Tosca — que começara como pastora — ganha a vida a cantar. Apertados pelo fascismo e pela guerra, literatura e cinema apropriaram-se do real, em parte estimulados pelas ideias do guionista e teórico Cesare Zavattini. Ao mesmo tempo, assistia-se a um renovado interesse pela etnologia. O próprio fascismo contribuíra, direta e indiretamente, para a aposta neorrealista. Por um lado, a imagética da propaganda revoluciona as artes gráficas, tanto à esquerda como à direita, na Rússia Soviética como no Mundo Português do Estado Novo; por outro, o combate ideológico requer uma bandeira, uma imagem ou uma palavra de ordem: “No Pasarán!”, como gritou Dolores Ibárruri, ‘La Pasionaria’, em Madrid em 1936. Ação implica reação, ensinou-nos Newton. As imagens neorrealistas sempre foram o instrumento mais eficaz para o desenvolvimento de uma consciência social. A miséria é a mesma em todo o lado; os horrores da guerra, também.(…)

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Na folha de sala, um interessante caderno de 8 páginas, que inclui algumas fotografias, regista Jorge Calado:

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1. Esta é a primeira apresentação da colecção de fotografia internacional, “A Família Humana”, iniciada pelo Museu do Neo-Realismo em Agosto de 2019. Nas palavras certas da directora científica, Raquel Henriques da Silva, a aquisição de obras de arte é um sinal de “dinamismo voltado ao futuro de um museu”, garantindo-lhe “um lugar mais respeitado entre os pares e a comunidade” que serve. Uma vez definida — por razões financeiras e de mercado — que a aposta seria na fotografia, as perguntas que se punham eram O Quê? e Porquê?. Dada a forte matriz e raízes do Museu do Neo-Realismo, optei pela chamada fotografia humanista que emergiu, pujante de força vital em todo o mundo, nas décadas de 1930-40 — precisamente as décadas de afirmação do movimento e sensibilidade neo-realistas. São óbvias as ligações desta Colecção à literatura e ao cinema.

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2. A missão era ambiciosa: revelar a universalidade da experiência humana, à semelhança da célebre exposição de 1955 “A Família do Homem”, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, que viajou por 37 países (mas não veio a Portugal). Com a rapidez de movimento e de comunicação, o mundo encolheu. Reconhecemo-nos nas imagens de outras terras e outras gentes. Os problemas de outros povos são os nossos problemas. No meio da tempestade das alterações climáticas, estamos todos no mesmo barco, à deriva.

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3. A Colecção “A Família Humana” do Museu do Neo-Realismo – que continua a crescer e a desenvolver-se — conta agora com 375 fotografias de mais de 175 artistas, homens e mulheres de 25 nacionalidades que fotografaram em 60 países dos cinco continentes. Estão representados grandes mestres da história da fotografia como Bruno Barbey, Edouard Boubat, Jack Delano, Alfred Eisenstaedt, Micha Bar-Am, Morris Engel, Gisèle Freund, Toni Frissell, Tim Gidal, John Gutmann, Ernst Haas, Bert Hardy, Lewis Hine, Henri Huet, Pierre Jahan, Ida Kar, Russell Lee, Nina Leen, Don McCullin, Lennart Nilsson, Willy Ronis, Arthur Rothstein, David Seymour, Erika Stone, Pierre Verger, etc., alguns dos quais trabalharam em Portugal, além de uma dúzia de fotógrafos portugueses, de Carlos Relvas a Ernesto de Sousa e José M. Rodrigues. Como, por limitações de espaço, só é possível mostrar um terço da Colecção, haverá periodicamente uma rotação das peças expostas.

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4. O mercado da fotografia como obra de arte coleccionável tem menos de meio século. O primeiro leilão fotográfico internacional da Casa Sotheby’s teve lugar em Londres em 1971 (em Nova Iorque em 1975 e em Paris em 2002), com preços hoje considerados irrisórios. O cânone fotográfico continua em aberto, na medida em que o trabalho de muitos artistas da câmara foi pouco divulgado e permanece esquecido. Para qualquer curador, a satisfação maior está na revelação de artistas cuja produção caíra no olvido. O Museu do Neo-Realismo pode desempenhar um papel importante na divulgação das obras de fotógrafos como Annemarie [Schwarzenbach] Clarac, Graham Del Monte, Mauricio Fresco, Otto Karminski, Kees Scherer, etc., vários deles e delas com histórias pessoais heróicas que merecem ser conhecidas e celebradas. Clarac, Fresco e Scherer passaram por Portugal, Del Monte fotografou extensivamente em Macau em 1937; Karminski é outro fotógrafo admirável como artista e cidadão que escapou ao Holocausto (e com dezanove imagens, o melhor representado na Colecção).

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5. As fotografias são como palavras, ou melhor, frases com sujeito e predicado (como se dizia no tempo em que as pessoas sabiam pensar e falar). Uma exposição fotográfica forma um discurso complexo que cabe ao visitante completar e decifrar. Para facilitar a leitura, a exposição está organizada em sete secções e três núcleos. Sete, de acordo com as idades do homem e da mulher definidas por Jaques na peça de William Shakespeare, “Como lhe Aprouver”. Sete como os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas da escala musical ou os pecados mortais. Os núcleos abraçam as várias religiões, transportam-nos à lezíria ribatejana e recordam-nos que durante a II Guerra Mundial Lisboa era uma cidade aberta a quem fugia do horror nazi (e não só). Pelo caminho, celebramos várias formas de lazer, espantamo-nos com o que se passa na rua, vergamo-nos às exigências do trabalho, na terra e no mar, e lutamos por uma vida melhor, às vezes de armas na mão (assim pagando os erros dos líderes políticos). No fim, porém, somos todos iguais. Como escreveu Shakespeare, encontramo-nos todos no ‘mercado da morte’, sem dentes, sem olhos, sem sabor, sem nada…

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Integra a exposição um núcleo dedicado ao fotógrafo Otto Karminski (1913-1982), central no espaço da exposição, tendo sido publicado um pequeno livreto, de 16 págs, reproduzindo 11 das 19 fotografias da coleção, o que o torna no fotógrafo mais representado.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2022

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Destaque ainda para o fantástico catálogo que acompanha a exposição, com 300 páginas, integrando textos de Alberto Mesquita, presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, de Raquel Henriques da Silva, diretora científica do Museu do Neo-Realismo (2018-2022), e as “Explicações” e um muito interessante ensaio, estes de Jorge Calado, inclui a reprodução de 187 fotografias, as biografias de todos os artistas e fichas do acervo completo da Colecção à data de 10 de junho de 2021. Em breve farei aqui uma apresentação do mesmo, no qual narra com detalhe a génese e o crescimento da Coleção.

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A exposição “A Família Humana”, com base na Coleção Internacional de Fotografia do Museu do Neo-Realismo, criada e organizada por Jorge Calado, está patente naquele museu, em Vila Franca de Xira, na Rua Alves Redol, n.º 45, de 10 de julho de 2021 a 29 de maio de 2022.

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A Coleção Internacional de fotografia “A Família Humana” foi distinguida com menção honrosa do prémio Incorporação dos Prémios APOM 2022, atribuídos pela Associação Portuguesa de Museologia, em 27.05.2022.

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Sobre Otto Karminski, no FF, aqui.

Pode ler o artigo “A vida inteira”, no Expresso de 04.07.2020, aqui.

Pode ver sobre Jorge Calado no FF, aqui.

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Atualizado em 30.05.2022.

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