INÊS GONÇALVES, KILUANJE LIBERDADE, AGORA LUANDA, 2007

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Inês Gonçalves, Kiluanje Liberdade

Agora Luanda

Fotografia: Inês Gonçalves, Kiluanje Liberdade / Ensaios: José Eduardo Agualusa, Delfim Sardo

Coimbra: Edições Almedina / Março . 2007

Português / 18,8 x 29,2 cm / 192 pp

Cartonado

ISBN: 9789724030838

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Dividido em capítulos, por alguns dos bairros de Luanda, “Agora Luanda” é sobretudo um retrato, cheio de cor e vida, agora, num tempo concreto, de pessoas, sobretudo jovens, na e da cidade de Luanda. Os retratos são, por vezes, um pouco mais amplos na paisagem da cidade, a par com alguns registos desta, e de quando em quando, desde um ponto elevado, abarcando a imensidão da cidade e das suas diferenças, afastando-se do detalhe e do pormenor que o olhar junto às pessoas permite.

São retratos da alegria e da vida, muitas vezes, de quem tem muito pouco, mas que vive, quer crescer, ser feliz. “Ouvindo (com o coração) as estórias destas pessoas, já são outros, agora, estes retratos. Transmudam-se. E sim, são grandes quadros épicos; e sim, há poesia neles, a mesma harmonia rebelde das tempestades. Um território de sonhos, simultaneamente belo e perigoso, como um campo de minas coberto de girassóis.”

São “Estórias de homens, mulheres e crianças, dispostos a chegar ao lugar certo, ainda que seja por caminhos tortos. Pessoas que querem a todo o custo endireitar caminhos. Gente capaz, inclusive, de fabricar caminhos. São, enfim, retratos de uma cidade que resiste, teimosamente, não obstante as carências de todo o género. A Luanda que ri, e dança e festeja a vida, mesmo enquanto faz o luto. A Luanda que ama, que se apaixona e se entrega, não obstante o continuado abandono dos poderes públicos. A Luanda que sabe (ou intui) que sexo é subversão, que sexo é revolução, e que inventou o kuduro e a tarrachinha, depois de ter inventado o semba ou a kizomba. A Luanda que está a dar uma nova alma à língua portuguesa.”
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José Eduardo Agualusa sob o título “Louvação do caos”, escreve um conjunto de memórias e reflexões sobre a cidade. Registo algumas:

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Luanda. Ou Lua, como é conhecida na intimidade. Também Loanda. Literariamente: Luuanda (veja-se Luandino Vieira). De seu nome completo, São Paulo da Assunção de Luanda, foi fundada em 1575 por Paulo Dias de Novais. Vinte anos mais tarde chegaram à nova urbe as doze primeiras mulheres brancas, que logo arranjaram noivos e casaram e tiveram filhos. Em 1641 a cidade foi ocupada pelos holandeses, os quais saíram a toque de caixa, apenas sete anos depois. A 15 de Agosto de 1648 uma tropa carnavalesca de brancos, negros e índios, trazida até África nos galeões do imensamente próspero latifundiário e escravocrata carioca, não obstante natural de Cádiz, em Espanha, Salvador Correia de Sá e Benevides, desembarca em Luanda. Iludidos por uma série de manobras audaciosas de Correia de Sá, mais de mil soldados holandeses rendem-se, abandonando duas fortalezas praticamente intactas a um exército exausto de menos de seiscentos homens.

Começou desta forma uma esplêndida confusão de raças, línguas, sotaques, apitos, buzinas e atabaques, que, com o passar dos séculos, mais não fez do que aprimorar-se. O caos engendrando um caos maior. Hoje, misturam-se pelas ruas de Luanda o umbundo oblongo dos ovimbundos. O lingala (língua que nasceu para ser cantada) e o francês arranhado dos regrês. O português afinado dos burgueses. O surdo português dos portugueses. O raro quimbundo das derradeiras bessanganas. A isto junte-se, com os novos tempos, uma pitada do mandarim elíptico dos chineses, um cheiro a especiarias do árabe solar dos libaneses; e ainda alguns vocábulos em hebreu ressuscitado, (…), colhidos sem pressa nas manhãs de domingo, em alguns dos mais sofisticados bares da Ilha. Mais o inglês, em tons sortidos, de ingleses, americanos e sul-africanos. O português feliz dos brasileiros. O espanhol encantado de um outro cubano que ficou para trás.

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E toda esta gente movendo-se pelos passeios, acotovelando-se nas esquinas, numa espécie de jogo universal da cabra cega. Moços líricos. Moças tísicas. Empresas de esperança privada. Chineses (de novo) em revoada. Meninos vendendo cigarros, chaves, pilhas, pipocas, cadeados, almofadas, cabides, perfumes, telemóveis, balanças, sapatos, rádios, mesas, aspiradores. Meninas vendendo-se à porta dos hotéis. Meninos apregoando quimbembeques, espelhos, colas, colares, bolas de plástico, elásticos para o cabelo. Meninas negociando cabelo loiro, “cem por cento humano”, em tranças, para tiçagem. Mutilados hipotecando as próteses. Quitandeiras mercadejando mamões, maracujás, laranjas, limões, pêras, maçãs, uvas suculentas e remotos kiwis.

Tio! Paisinho! Meu padrinho! Ai, olha aqui o teu amigo. Carapauê! Vai por quinhentos, o disco, meu brother!

Lavo.

Guardo.

Engraxo.

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Se fosse uma ave, Luanda seria uma imensa arara, bêbada de abismo e de azul. Se fosse uma catástrofe, seria um terramoto: energia insubmissa, estremecendo em uníssono as profundas fundações do mundo. Se fosse uma mulher, seria uma meretriz mulata, de coxas exuberantes, peito farto, já um pouco cansada, dançando nua em pleno carnaval.

Se fosse uma dança, um aneurisma.

Difícil caminhar na lua. A poeira entranha-se no pensamento. (…)

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A arte fotográfica não tem tradição em Angola. Ao contrário do que se passou em Moçambique, para tomar como referência um país muito próximo de Angola em termos culturais e históricos, nunca houve em Angola uma escola de fotografia. Todavia, o princípio foi auspicioso. As séries de quatro álbuns com as excepçionais imagens recolhidas no final do séc. XIX, entre Cabinda e Moçâmedes, por Cunha e Moraes ajudaram (e muito) a inventar Angola. Evidentemente era ainda o olhar do outro, carregado de preconceitos, mas também de genuíno fascínio e, até, encantamento. Infelizmente, Cunha e Moraes não teve seguidores à sua altura.

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Delfim Sardo, com o título “Cuca”, escreve sobre Luanda, Inês Gonçalves e Kiluanje Liberdade e esta obra:

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As fotografias de Inês Gonçalves têm sido, habitualmente, retratos.

Só pode fazer retratos quem gosta de ver pessoas.

Os seus retratos não são capturados à socapa: são consentidos, frontais e respeitosos. Quero dizer que se situam dentro da grande tradição humanista, que acredita que o rosto é a última trincheira de resistência da aura, mas que, por esse facto, pertencem também a uma outra linhagem, um pensamento político sobre a dignidade. Quando, numa fotografia, temos uma imagem que nos encara frontalmente, sabemos que o fotógrafo quer partilhar connosco a densidade da presença de quem esteve perante a câmara. Pressupomos, que a frontalidade, foi o resultado de uma negociação e a negociação é outra das grandes formas da tradição humanista: só negociamos com quem respeitamos, não por ser semelhante a nós, mas porque precisamente possui uma diferença que propõe um ganho mútuo. No caso da imagem fotográfica que cabe dentro do universo do retrato, desse retrato frontal e rembrandtiano, o ganho é duplo para ambas as partes. O retratado sabe que, se a câmara o elegeu, é porque nessa eleição está uma prova da sua individualidade, materializada posteriormente numa imagem (e as imagens são todas materiais, sendo diversa a matéria que as compõe), e o retratador retira da imagem do retratado aquilo que procurava. Os retratos são, por isso, confirmações daquele que retrata, sobretudo aqueles que a partir de si, retratam um lugar, um mundo, um espaço. Confunde-se o rosto do retratado com uma época, provavelmente como se confunde o rosto de Inocêncio X, de Velázquez, com o século XVII, como se confundirá o rosto de Allie Mae Burroughs, fotografada por Walker Evans, com a Depressão, ou como se confunde o rosto dos dois pugilistas fotografados por August Sander, com a Alemanha entre as guerras.

(…)

Assim, os seus retratos são uma concretização dessa forma superior de possuir liberdade que reside na possibilidade de se representar para uma imagem, não somente de ser representado numa imagem. Mais, os retratados de Inês Gonçalves parecem, portanto, ser representantes não outorgados de um lugar.

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Não sei se Luanda é como as fotografias de Inês Gonçalves, mas acredito que sim. Não posso ajuizar da forma como a cidade se encontra nas imagens, mas posso saber da sua verosimilhança. Mais, posso intuir toda uma vida da cidade na forma como as imagens mostram os edifícios, as ruas, os planos picados sobre o mercado, os bairros, os reclamos dos cabeleireiros, o pó, o trânsito, o mapa de circulação.

Estas fotografias marcam, provavelmente pela intimidade que possuem com a prática cinematográfica documental, um novo período no trabalho de Inês Gonçalves, ao qual não será estranho o caminho iniciado com Outros Bairros, o primeiro documentário em colaboração com Kiluanje Liberdade, também co-autor desta nova incursão documental.

Na fotografia contemporânea existe um retorno da documentalidade, cruzada agora com uma clara consciência do seu carácter empírico-antropológico e recusando a qualidade expressionista do foto-jornalismo. Nesta ampla possibilidade de mapeamento, está inscrito o outro lado dos retratos, o seu contexto, o lugar onde aquela luta pela identidade própria se desenvolve.

(…), estas fotografias de Luanda definem uma cidade, porque, pela sua hierarquia como imagens, nos constroem o lugar, ou o seu hipotético “panorama” fragmentário. Da mesma forma como os panoramas do século XIX definiam um local, estas imagens de Luanda perspectivam o lugar a partir de uma distância, da desorganização de um plano de imagem que, evidentemente, não compõe a completude de um cenário, mas dá-nos os elementos para imaginarmos um set.

Essa será, possivelmente, a palavra-chave da Luanda de Inês Gonçalves e de Kiluanje Liberdade, é um lugar de um filme, um cenário fervilhante, terno, violento, esventrado e belíssimo. Podemos mesmo suspeitar, que a Luanda que nos mostram, é uma ficção. Provavelmente, habitará, para o futuro, a nossa expectativa.

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Temos, portanto, uma versão da cidade onde se cruzam dois planos históricos da história de arte, o retrato e a paisagem, duas formulações históricas que aqui são como que desmontagens de um filme, sabendo que o filme também existe, por sua vez também ele desmontado em três ecrãs e reeditado num trabalho complexo de som que se cruza, por sua vez, com um segundo trabalho de edição sonora que povoará a exposição. Prefiro ver tudo isto como um filme que, quase didacticamente, se desconstrói perante o espectador, deixando-nos a responsabilidade de efectuarmos, mentalmente, a nossa edição subjectiva e insubstituível. Isto é, a Luanda deste projecto fragmentário, transforma-se na nossa íntima percepção da possibilidade de um lugar, para a qual contribui um excesso de informação e sempre uma falta.

Pareceu-me, desde o início, desde que vi as primeiras imagens, a mim, que nunca fui a Luanda, que me estava a ser proposto um puzzle com peças a mais e peças a menos, e que esse excesso e esse defeito, faziam parte do jogo de espelhos que tinha sido o mapeamento subjectivo da cidade efectuado, mas que era também a razão da possibilidade imperfeita de eu construir um lugar.

(…)

Por isso, as traseiras do anúncio da Cuca no alto de um prédio, é uma visão, na qual se cruzam a memória cinematográfica, as estórias que ouvi a muitos amigos que em tempos vieram de Angola, e uma visão de anjo. Claro, que o ponto de vista do alto do prédio através da grande estrutura metálica invoca Hollywood, mas também Wenders e a sua visão de Berlin, através dos anjos caídos, daqueles que tudo ouvem, cheios dos dramas que vêem de olhos fechados. Como catalizadores sem corpo sobrevoam a cidade para finalmente se apaixonarem e caírem no som, no cheiro e no peso.

Esta série de imagens é assim, indecisa entre o olhar do anjo, o fascínio do corpo e o cheiro que não pode ser representado. A partir de agora, a minha Luanda começa aqui. Na Cuca.

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Inês Gonçalves e Kiluanje Liberdade, Agora Luanda, 2007

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Inês Gonçalves. Nasceu em 1964. Vive em Lisboa e São Tomé e Príncipe.

Entre 1985/8 estudou Fotografia no Photographic Training Center em Londres. Em 2004 frequentou o curso de Realização de Cinema Documental dos Ateliers Varan, Programa Gulbenkian de Criatividade e Criação Artística. Entre os anos 1988 e 2004 trabalha como fotógrafa em vários jornais e revistas. Em 2005 com Kiluanje Liberdade funda a Produtora NO LAND .

EXPOSIÇÕES DE FOTOGRAFIA (selecção):

1992 Lusitânia”. Circulo de Bellas Artes, Madrid. 1994 Festival International de la Photographie de Mode”, Paris.

1995 “Fotografias de Moda”, Edificio Olaio, Bairro Alto, Lisboa. 1996 “Língua Franca”, Encontros de Fotografia de Coimbra. 1997 “Linha de Fronteira”, Museu da Guarda, Guarda. “Manto de Ceres”, Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova.

1998 “Cabo Verde”, com banda sonora de Vasco Pimentel, Caminho do Oriente.

1999 “Dialogues, La Photographie Portugaise Contemporaine”, Galerie Municipale du Château D ́Eau, Toulouse.

1999 “Cabo Verde”, Cidade da Praia, Cabo Verde.

2003 ”Work” CAV Centro de Artes Visuais 2006 “Agora Luanda” Exposição no Centro Cultural Português em Luanda.

2007 “Agora Luanda” na Iwalewa-Haus da Universidade de Bayreuth 2008 Exposição sobre o Tchiloli na Va Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe

2009 “Agora Luanda” Exposição na Galeria Plataforma Revólver em Lisboa.

2009 “São Tomé: Máscaras e Mitos” Exposição na Galeria Pente 10 em Lisboa..

LIVROS (selecção):

“Fotografias de Moda”, texto de Teresa Coelho e Rui Henriques Coimbra, por ocasião da exposição no Edifício Olaio, 1995.

“Obras do Metro”, Metropolitano de Lisboa,

1996. “Cabo Verde”, texto de João Miguel Fernandes Jorge Edição Encontros de Fotografia de Coimbra

1999“Coimbra” texto Pedro Paixão Editora Quarteto,

2000“Goa: História de um Encontro” Almedina, Texto de Catarina Portas

2001 “Imagens Médicas” Fragmentos de uma História,

2001“Agora Luanda” edição. Almedina Textos de Delfim Sardo e José Eduardo Agualusa ,

2007 “Moderno Tropical “ Arquitectura em Angola e Moçambique” edição Tinta da China em co autoria com Ana Magalhães recebeu o prémio DAM architectural Book Award 2010

2014 “Sabores da Nossa Terra” Livro de gastronomia São Tomé e Príncipe

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Kiluanje Liberdade nasceu em Angola, em 1976. Licenciado em Ciências da Comunicação e Cultura na Universidade de Lisboa e Pós-graduado em Estudos Africanos (ISCTE, Lisboa) e Doutorando em Estudos Culturais na Universidade do Minho. É realizador de Televisão na TV Zimbo (Luanda). Foi assistente de realização em “A Favor da Claridade”, de Teresa Villaverde e assistente de produção na Exposição de Fotografias com Banda Sonora, Cabo Verde, de Inês Gonçalves e Vasco Pimentel. Realizador de documentários desde 1995, com o filme “O Rap é uma Arma”, recebeu o prémio de Melhor Primeira Obra Documental dos Encontros Internacionais de Cinema Documental da Amascultura, em Portugal.

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Pode conhecer mais sobre a obra de Inês Gonçalves no FF, aqui e no site da artista, aqui.

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