LUZ E TEMPO: VIAGEM PELA MEMÓRIA E DEMOCRACIA. A CADEIA DA RELAÇÃO DO PORTO PELA FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO CAMPOS LEAL
Dia Mundial da Fotografia.
Exposição patente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, de 26 de junho a 19 de setembro de 2025.
A propósito da exposição, dois ensaios: um de José Soudo e um de Susana Paiva.
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Neste Dia Mundial da Fotografia trago aqui a exposição que António Campos Leal apresenta no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa: “LUZ E TEMPO: VIAGEM PELA MEMÓRIA E DEMOCRACIA. A CADEIA DA RELAÇÃO DO PORTO”.
António Campos Leal é especialista em fotografia estenopeica, também conhecida por “pin-hole” ou “pinhole”. Na exposição podemos ainda apreciar algumas das suas câmeras, por ele realizadas.
E, a propósito dela, o ensaio que José Soudo escreveu para o catálogo: “O Fotógrafo Que Guarda a Luz e o Tempo, em Caixas com Estenopos”, e que se afigura uma breve história da fotografia e também o texto de Susana Paiva “A Fotografia É o Percurso da Luz no Tempo”.
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Assinalando os 10 anos de atribuição da Marca do Património Europeu à Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte, a Torre do Tombo apresenta uma exposição de fotografia aos espaços da Cadeia da Relação do Porto, onde atualmente se encontra instalado o Centro Português de Fotografia.
Em 2015, a Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte, documento pelo qual o rei D. Luís I sanciona o Decreto das Cortes Gerais de 26 de junho de 1867 e que aprova a reforma penal e das prisões, com a abolição da pena de morte, foi reconhecida pela Comissão Europeia como Marca do Património Europeu.
A Marca do Património Europeu reconhece e promove sítios e iniciativas de grande importância para a história, cultura e construção da União Europeia reforçando o sentimento de pertença e os seus ideais, assim como procura valorizar o património cultural, a diversidade nacional e regional e incrementar o diálogo intercultural dos países que compõem a União Europeia.
Nesta exposição reproduzem-se fotografias tiradas com câmaras estenopeicas, uma técnica fotográfica que utiliza uma câmara sem lente, onde a imagem é formada através de um pequeno orifício. Não há lentes, nem quaisquer mecanismos que moldem ou tratem a luz que entra pelo furo. Esta técnica é baseada nos princípios da câmara escura, um dispositivo que usa um pequeno orifício para que se forme uma imagem invertida numa superfície interna.
As câmaras estenopeicas podem ser construídas facilmente com materiais correntes, como caixas e latas, o que as torna acessíveis a qualquer pessoa. É um processo lento e meticuloso, que requer paciência e experimentação para obter bons resultados. É uma forma pura e despojada de olhar e registar espaços e objetos.
O autor das fotografias, António Campos Leal, ao longo de vários anos foi tirando fotografias dos diversos espaços da Cadeia da Relação do Porto, exemplar único, no país, da arquitetura judicial e prisional dos finais do Antigo Regime.
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José Soudo escreveu o ensaio sobre a exposição:
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O FOTÓGRAFO QUE GUARDA A LUZ E O TEMPO, EM CAIXAS COM ESTENOPOS
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Quando António Campos Leal (n. Peso da Régua – 1952), me pediu para escrever um texto que acompanhasse esta exposição que a Torre do Tombo nos apresenta e está a decorrer entre os dias 26 de Junho e 30 de Setembro, sob a designação,…
“Luz e Tempo”
“Viagem pela Memória da Democracia”
“A Cadeia da Relação do Porto, pelas fotografias de António Campos Leal”
…disse de imediato que sim, pela amizade e respeito mútuo que há entre nós e porque tenho um fascínio enorme pela tipologia fotográfica em que produziu as fotografias ora apresentadas.
Sabia que a tarefa não ia ser fácil, como comprovarão, caso tenham a paciência para ler tudo até ao fim.
Ressalvo desde já que estou a escrever este texto no mês de Abril de 2025, pelo que veio em meu auxílio, o pequeno pormenor de, pouco tempo depois da viragem do milénio, o fotógrafo norte-americano Tom Persinger (n. 1962), investigador em História da Fotografia e fundador do colectivo f/295.org, ter tomado a iniciativa de dar destaque e comemorar no último domingo de Abril de cada ano que passa, o “Dia Mundial da Fotografia Estenopeica” ou na versão em língua inglesa, o “Worldwide Pinhole Photography Day”, o que na sua interpretação, a qual subscrevo, se deve aos parâmetros de simplicidade e criatividade que este processo de captura contém em si mesmo.
Neste ano de 2025, como se pode comprovar no calendário, a data coincidiu com o dia 27 de Abril.
Porque sei que assim é, sem quaisquer dúvidas, atrevo-me desde já a afirmar que o fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos, comemora e contribui para este dia, só que todos os dias do ano.
António Campos Leal, não sendo o único, é um dos que em Portugal manifesta desde há muito, uma paixão imensa por esta maneira de produzir fotografias, sentidas e com muito sentido, lutando para que esta forma de fotografar e acima de tudo os seus resultados, sejam entendidos com o respeito e o mérito que têm e merecem, com uma dedicação incansável, seguindo algo cuja interpretação só a mim compromete, quando associo o seu modo de trabalhar, à vertente e à filosofia de acção experimentalista, de há cerca de um século atrás, que foi tão cara aos construtivistas, os quais pugnavam…
“…pelo dever de se experimentar sempre…”,
…ideia esta partilhada e vivenciada pelo fotógrafo russo, Aleksandr Mikhailovich Rodchenko (1891/1956) e por outros companheiros e militantes, que à época, punham o seu conhecimento artístico, considerado de vanguarda, no qual a modernidade da fotografia estava implícita, ao serviço dos trabalhadores e da cultura dos mais humildes, assim como da utopia social que se desejava a caminho de uma democracia plena, mas para já, isso é outro assunto e para outras dissertações.
Este fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos, tem um percurso longo de cerca de cinco décadas, noutras tipologias fotográficas, mas é acima de tudo nesta valência tão pouco divulgada e muitas das vezes vista como coisa de somenos, que se lhe sente o enorme impulso criativo e a convicção de lhe dar o lugar de destaque que merece.
Para os de vós que possam não estão familiarizados com esta prática fotográfica, recordo que a captura da imagem é feita com câmaras que não têm objectiva.
Em sua substituição, a luz chegará ao material fotossensível através de um estenopo, ou seja, através de um pequeno orifício, que na gíria é usual ser designado como buraco de agulha, ou na versão à inglesa, pinhole.
Para a preparação do estenopo, há uns de nós, que os construímos ou adaptamos, fazendo-o segundo cálculos matemáticos altamente rigorosos e precisos, tais como os propostos pelo cientista britânico, Lorde Rayleigh, ou melhor, John W. Strutt (1842/1919), mas também há outros de nós, que damos origem ao furo por onde a luz há-de passar, com prego e à martelada, pelo que se pode dizer, que há estenopos para todos os gostos e consequências, com consequências bem diferentes entre si, consoante os propósitos, claro está.
Como nota à margem, acrescento que sem ser com prego, mas com faca de corte, isto caso aceitem o desafio de ir procurar o filme “Fixing the shadows”, através de um qualquer motor de busca internáutico, episódio 1 de uma série de 6 filmes, apresentados em 2007 e produzidos para a BBCfour, por Tim Kirby, sob a direcção de Deborah Lee, sob o título geral “The Genius of Photography”, em que ao minuto quatro aproximadamente e após o genérico deste episódio, se vê o fotógrafo cubano, Abellardo Morell (n. 1948), a adaptar o quarto de um hotel de charme em Veneza, forrando com tela preta todas as janelas existentes no espaço, para depois abrir um orifício tosco na janela que está virada para o Grande Canal…
Sugiro que vejam estes três ou quatro minutos do filme e deslumbrem-se com o que vão ver.
Está por ali explicado de um modo tão evidente e simples, o princípio básico do percurso da luz, quando ao entrar através de buracos, se projecta na parede oposta ao orifício, pelo que não há muito mais a acrescentar, a não ser que esta evidência da propagação da luz e da sua projecção, já tinha sido descrita no séc. V a.C., no livro “Mo Jing” onde estão compilados os cânones do filósofo e cientista chinês, conhecido por Mo-Tzi, ou Mozius, ou Mo-Ti ou Mo-Tzu (470/391 a.C).
A historiadora, Naomi Rosenblum (1925/2021), evidencia no livro World History of Photography, o conhecimento deste princípio da física, desde tempos muito remotos e em várias partes do mundo em simultâneo, referindo a observação feita pelo filósofo chinês, a propósito da formação de
“…uma imagem invertida e muito exacta, como consequência da passagem de raios luminosos através de um pequeno buraco, quando os mesmos se projectam no interior de um quarto obscurecido…”.
Este mesmo assunto é descrito por muitos outros cientistas ao longo dos séculos e se pensarmos bem, é a matriz que nos trará até às câmaras fotográficas, que mais não são que a evolução e miniaturização natural dos quartos escuros com um buraco, os quais durante o período em que na Europa, a língua escrita dominante era o latim, eram designados como camera obscura.
Tal como referi, Mo-Tzi descreveu na China no séc. V a.C. e no século seguinte, em tempos que se consideram da Grécia Clássica, Euclides (364/295 a.C), o filósofo, matemático e físico da vibrante cidade de Alexandria, refere este mesmo princípio, para comprovar a propagação da luz em linha recta, no tratado ”Stoicia” e Aristóteles (384/322 a.C), fá-lo-á na ”Problemática”.
Se nos predispusermos a dar um enorme salto temporal de cerca de 1500 anos, descobriremos que o cientista árabe Ibn Hassan Ibn Al-Haitham (965/1038), também conhecido como Alhazen ou Alhacen, refere-o no tratado – “Kitab al Manazir”, traduzido em 1270, por Roberto Grosseteste para latim, sob o título “Opticae thesaurus Alhazeni”, descrevendo o fenómeno como o do al-bayt almuthlim, o que em árabe significa quarto escuro, a tal camera obscura, em latim.
Helmut Gernsheim (1913/1995), colecionador de fotografia e investigador da sua história, alude no “The Origins of Photography”, sobre a existência de um manuscrito árabe, atribuído a Alhazen e arquivado na Biblioteca Nacional da Índia, onde no mesmo é reportado que,
“…a visualização da forma em crescente de um eclipse solar,
desde que este não seja total,
a sua maior ou menor qualidade e definição na projecção dentro do quarto escuro,
depende da medida do buraco redondo através do qual a luz passa,
para se projectar no alvo que esteja opsto ao buraco…”
Quanto a este assunto, é muito interessante a descrição do astrónomo francês, Guillaume de Saint-Cloud, que viveu entre os finais do séc. XIII, até cerca da segunda década do séc. XIV, que no manuscrito datado de 1285, “Almanach planetarium”, ensina a determinar o melhor diâmetro, para se fazer as observações de eclipses solares:
“…o diâmetro do buraco a abrir na parede de uma casa, ou no seu telhado,
para a observação de eclipses solares,
deve ser equivalente ao diâmetro do bocal de uma pequena garrafa de vinho
e distar cerca de 20 a 30 pés do local onde se pretende fazer a recepção da imagem…”,
Leonardo da Vinci, alguns anos mais tarde, abordará e fará a respectiva descrição deste mesmo assunto, algo a que o professor e cientista Rómulo de Carvalho (1906/1997), também conhecido como António Gedeão, enquanto poeta, faz referência na página 7 da sua “História da Fotografia”, com edição de 1962, daa Atlântida de Coimbra e integrada na colecção “Ciência para gente jovem”:
“…este fenómeno foi observado, estudado e descrito há centenas de anos por
Leonardo da Vinci (1452-1519), o célebre pintor da Gioconda,
a quem se devem importantes observações científicas,
o qual escreveu em 1490, no Codex Atlanticus, que
“…quando as imagens dos objectos iluminados penetram num compartimento escuro, através dum pequeno orifício e se recebem sobre um papel branco, situado a certa distância desse orifício, vêem-se no papel, os objectos invertidos com as suas formas e cores próprias…”.
e o compartimento assim disposto, recebeu o nome de
camera obscura, isto é, quarto escuro ou câmara escura…”.
Da longa lista de cientistas, artistas e outros que se socorreram desta ferramenta de trabalho, para finalidades diversas, das quais as mais relevantes, estiveram directamente relacionadas com estudos da física da propagação da luz, observações de eclipses solares, permitir a preparação de desenhos e esboços, capturados através deste tipo de aparato, facilitando a preparação das gravuras ou pinturas finais. Destaco o uso do recurso por pintores como Albrecht Dürer (1471/1528), Johannes Vermeer (1632/1675), Giovanni Antonio Canaletto (1697/1768), Antonio Visentini (1688/1782) e noutras aplicações, o médico, matemático, geómetra, astrónomo e cartógrafo, Regnier Gemma Frisius (1508/1555), que no “De radio astronomico et geométrico liber”, descreve em 1545, a observação de um eclipse solar, visto e estudado no ano anterior, ssim como o filósofo, químico, matemático e astrónomo napolitano, Giovanni Battista della Porta (1535/1615), fundador no ano de 1560, da Academia Secretorum Naturae, o qual refere o uso de meio óptico na camera obscura, o que permitiu que deixasse de ser necessário estar dentro dos quartos e os mesmos podiam diminuir de tamanho e ser transportados à mão com o operador fora dos ditos, descrevendo este artefacto como muito útil para apoio de desenhistas, arquitectos e também para finalidades lúdicas.
Giovanni construiu uma camera obscura que permitiu um “espectáculo visual”, proporcionado aos seus amigos, com uns dentro e outros fora e alternando a situação entre eles, para que os que estavam dentro pudessem observar os que estavam fora, virados de cabeça para baixo com os situados à esquerda a surgirem do lado direito da imagem e vice-versa.
Ao que consta, não tendo sido um caso isolado, este assunto trouxe-lhe problemas complexos com a Inquisição, pois houve alegria a mais, em tempos complexos, acrescento eu.
No respectivo tratado que escreveu em 1558, Magiae Naturalis, afirmou:
“…se não sabe pintar,
pode por este método desenhar o contorno das imagens com um lápis.
De seguida apenas tem que lhe acrescentar as cores.
Isto faz-se colocando um papel branco que receba a imagem.
Para uma pessoa hábil, esta é uma questão muito fácil…”
O jesuíta Athanasius Kircher (1601/2(?)/1680), matemático, físico, químico e filósofo, refere em 1646, no ”Ars Magna Lucis et Umbrae”, o recurso a uma camera obscura portátil, tipo cubo, utilizável em todas as faces, com outro cubo translucido dentro que em cada face, recebia a projecção da imagens da face correspondente “para registar o que é volátil”, o que lhe permitia observações e registos panorâmicos de cerca de 360º do espaço que o envolvia no seu exterior.
Há um legado de gravuras soberbas, sobre a cidade de Roma e seus arredores, feitas com recurso a camera obscura, pelo gravurista Giovanni Battista Piranesi (1720/1778).
Johannes Kepler (1571/1630), astrónomo alemão, utilizou uma tenda camera obscura, equipada com um periscópio na parte superior, para usar em trabalho de campo e ao mesmo tempo facilitar o seu transporte.
Como se está a constatar, a lista é longa e interminável e ao mesmo tempo muitíssimo incompleta, o que não deixa de ser injusto para os não são mencionados e são imensos…
Não poderei no entanto, deixar de referir que o Alferes José António Bentes, no Capítulo I – “Historia da Photographia – suas applicações”, do seu ”Tratado Theorico e Pratico de Photographia”, o manual por si produzido por incumbência do Comandante da escola do Exército, futura Academia Militar, para servir de apoio ao estudo desta disciplina nova – Photographia – a qual era ministrada aos Cadetes da Escola do Exército, como apoio para a Cadeira de Cartografia. O manual em questão foi editado no ano de 1866, pela Livraria de A. M. Pereira, situada na Rua Augusta, nº 52, em Lisboa e nele são referidas como câmaras de Porta, as câmaras fotográficas em uso nessa época e nesta escola militar, em homenagem a Giovanni Battista, atrás mencionado.
A conjugação de esforços que nos trará até à fotografia clássica, que associamos aos inícios do séc. XIX, tal como a conhecemos, está quase a acontecer.
De um modo pouco aprofundado, acabámos de fazer um percurso que nos trouxe desde tempos mais arcaicos, que mesmo sem comprovativo, nos poderão remeter para a Pré-História do Homem, até às câmaras fotográficas do séc. XIX e dessas até nós, numa evolução dos quartos escuros com buraco, que poderão ter sido as cavernas onde os nossos antepassados se abrigaram, passando por quartos escuros com buraco, em que o observador estava dentro dos mesmos, evoluindo para quartos miniaturizados e com meio óptico associado, que permite aos utilizadores, verem a imagem do assunto, projectada na parte de trás dos mesmos, sobre um vidro despolido ou qualquer outro tipo de material translúcido.
A evolução até às câmaras fotográficas dos tempos de hoje, seguiu este percurso, como se depreende.
Quanto ao material fotossensível, o outro meio necessário para conseguirmos desenhar sem a acção da mão e passarmos a fazê-lo por acção da energia lumínica, algo que se conjugará na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, em que os respectivos pioneiros, passaram a colocar e a ensaiar materiais diversos sensíveis à luz, dentro e fora da camera obscura, fazendo acontecer algo a que viremos a chamar fotografia, diria que é outra aventura evolutiva, em que as datas oficiais são as datas oficiais, mas as datas factuais, sendo imprecisas e por vezes equivocadas, são muito mais importantes para se entender o percurso desta parte do conhecimento dos processos que nos farão chegar aos desenhos de luz.
Trata-se dum tempo histórico que costumo designar como o d’ “A fotografia antes de ser fotografia”.
Aceite-se que os primeiros ensaios com sucesso, executados pelos pioneiros que nos antecedem, utilizaram materiais com capacidade para reagir à luz.
Não sendo o único, o nitrato de prata é um deles e é tão importante e significativo, para a história da fotografia.
Mesmo que não o saibamos, é da natureza dos materiais em prata escurecerem.
Esta evidência remete-nos para o tempo em nós, humanos, passamos a ser metalúrgicos, por volta cerca de 5000 anos a.C., pois verificamos o ferro a oxidar, e outros metais a alterarem-se por razões diversas e até a nossa pele a escurecer ou a alterar o seu tom, por receber sol.
Usámos e ainda usamos, ou para fazer armas e artefactos do dia-a-dia, ou para adorno e símbolo de poder, matériais metálicos. As jóias e ornamentos e outro tipo de objectos em ouro e em prata, verificando que os de ouro são bastante estáveis, mas os de prata tendencialmente escurecem por contacto com a luz.
Numa pequena fita de tempo, relembro o naturalista romano, Caio Plínio (23/79), o qual refere na “Historiae naturalis”,
“…a prata muda de tom, quando em contacto com águas minerais
ou com o ar salgado das costas do Mediterrâneo…”
O químico e astrólogo de Siracusa, Julius Firmicus Maternus (280/360), destaca importância dos alinhamentos astrais, dissertando “…sobre a influência dos astros na química…”.
Num tempo em que os nossos antepassados acreditavam no elixir da longa vida e na possível ransformação de metais básicos em metais preciosos, como o ouro que é um dos sinónimos máximos de poder, dando corpo ao sonho existencial do “Lapis philosophorum”, temos o patrono da química moderna, o persa Abu Musa Jabir ibn Hayyan (721/815), também conhecido como Geber, a verificar o escurecimento do nitrato de prata perante a luz, cerca do ano 794, embora o tratado onde isto é referido, só tenha sido traduzido e publicado em latim no ano de 1541, sob o título “De invenciones veritatis”.
Não se pode deixar de referir que na Baviera, o padre Alberto Magno (1206/1280), astrónomo, meteorologista, climatologista, físico, químico, botânico, zoólogo, filósofo e teólogo, que chegou a ser Papa e foi santificado em Roma, destaca o escurecimento do nitrato de prata, no “Compositum de compositis”, onde também refere que a mistura de ácido nítrico e prata, actua na pele humana como escurecedor, sendo muito difícil e doloroso retirar o seu efeito.
Não sendo com base no nitrato de prata, é desconcertante a notícia a propósito da visita do multimilionário Bill Gates à Expo98, o qual se mostrava ufano pela aquisição do original de Leonardo, o Codex Atlanticus, e em caixa lateral à mesma se refere algo assim:
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“…Os cientistas ingleses, Lynn Picknett, Clive Prince
e a cientista italiana Maria Consolata Corti,
especulam sobre a hipótese de Leonardo da Vinci, ter sido capaz de produzir
material fotossensível, fazendo uma mistura com:
clara de ovo, saís de amónio, sumo de limão e urina e com essa mistela (arrada numa tela colocada na parte posterior do quarto escuro de desenhar),
ter tido uma intervenção directa na execução, daquilo que é “…o mais importante objecto religioso, artístico e científico de sempre… O Santo Sudário”…”.
Expresso – Revista de 29/8/1998
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De facto todos estes produtos eram utilizados pelos pintores renascentistas, para estabilizar as tintas e corantes aplicados nas respectivas telas e sendo da Vinci um compulsivo curioso de tudo, é assunto para reflectir.
O químico, arqueólogo e historiador alemão, Georgius Fabricius (1516/1571), além de mencionar conhecer bem o trabalho “De re metallica”, publicado em 1546, pelo seu conterrâneo Georgius Agricola (1494/1555), no documento “De omni rerum fossilium genere, gemmis lapidibus metallis”, faz alusão ao escurecimento dos cristais de cloreto de prata, sob a acção da luz.
O químico e médico veneziano Angelo Sala (1576/1637), publica em 1614, “Septem planetarium terrestrium spagirico recensio”, aludindo que comprovou o escurecimento dos sais de nitrato de prata (lapis lunearis).
O analista químico, Rudolf Glauber (1604/1670) menciona a produção de Água Forte com prata e descreve-o nos ensaios, “Operis mineralis pars prima”, “Opera Omnia Chymica” e “Explicatio miraculi mundi”.
Neste relato das evidências, seria injusto não mencionar o holandês Wilhelm Homberg (1652/1715) que nos trará em 1694, o termo foto-química, para designar alterações na composição química dos materiais que aconteçam por via da luz, além do alemão Johann Heinrich Schultz (1687/1744), médico, anatomista, botânico e geógrafo, que no ano de 1727, entregou na Academia de Altdorf, em Nuremberga, sob o título: “Scotophorus Pro Phosphoro Inventus”, o que traduzido para português, nos dará algo assim, “Como descobri o portador da escuridão ao tentar descobrir o portador da luz”, onde faz o relato de experiências feitas por ele em 1725, com a mistura de nitrato de prata com gíz branco e a verificação do respectivo enegrecimento por acção da luz, ficando mais escuro o que está do lado da luz e menos escuro o que está do lado da sombra, terminando o seu relato com esta fascinante frase:
“…não tenho dúvidas de que esta experiência poderá revelar ainda outras utilidades no futuro…”.
A terminar esta reflexão sobre a questão histórica do conhecimento dos materiais sensíveis perante a luz, há que dar destaque ao fisico e farmacêutico, eleito em 1775, como Membro da Real Academia de Ciências de Estocolmo, Carl Wilhelm Scheele (1742/1786), o qual publicou em 1777, no “Tratado Químico do ar e do Fogo” – ” Chemische Abhandlung von der Luft und dem Feuer“ , a confirmação das suas experiências, nas quais detectou que o nitrato de prata era mais reactivo às radiações azul e UV, além ter ensaiado o amoníaco, como solvente de sais de prata.
Como retirar sais de prata não sensibilizados pela luz, o que na gíria chamamos de fixador e que irá ser determinante nos séculos vindouros para a evolução da captura fotográfica, está descoberto, mas ainda não vai ser utilizado, pois o séc. XIX ainda não chegou.
E o que dizer, a propósito do diferencial de cerca de 1700 anos, que separaram duas profecias que antecipam a possível existência da fotografia, muitos anos tempos antes de ela existir de facto?
Em 1760, o médico francês, Charles-François Tiphaigne de la Roche (1722/1774), No livro “Giphantie”, faz uma alusão
“…sobre a possibilidade de se fazer um registo permanente, num espelho miraculoso,
por via dos raios luminosos, que atravessam a camera obscura…”
algo de semelhante ao que é aludido no poema “O cabelo de Earinus” do napolitano Publius Papinius Stacius (40/96), onde se fala de,
“…uma imagem permanente, registada sobre uma bandeja revestida de prata…”
Thomas Wedgwood (1771/1805), filho de um industrial britânico na área das cerâmicas e o cientista da área da química, Humprhy Davy (1778/1829), vão deixar-nos, com data de 1802, um documento entregue para publicação nos jornais académicos da ”Royal Institution of London” onde relatam a sua capacidade de fazer “sun prints”, sobre papel de aguarela barrado com nitrato de prata, documento esse, designado por:
“An Account of a method of copying Paintings upon glass, and of making Profiles,
by the agency of Light upon Nitrate of Silver. Invented by T. WEDGWOOD, Esq.
With Observations by H. DAVY.”
Nos primeiros parágrafos deste relatório, referem o uso de
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…papel branco, ou couro branco, humedecido com uma solução de nitrato de prata,
não sofre nenhuma alteração quando mantido num local escuro, mas ao ser exposto
à luz do dia, rapidamente muda de cor, e, depois de passar por diferentes tons de cinza e acastanhado,
torna-se por fim quase negro.
As alterações de cor ocorrem mais rapidamente, à medida que a luz é mais intensa.
Quando o feixe do sol é directo, dois ou três minutos são suficientes, para produzir o efeito total.
Na sombra são necessárias várias horas…
“…delinear todos os objectos que sejam dotados de uma textura em parte opaca
e parcialmente transparente.
…As fibras lenhosas de folhas, podem ser representadas com muita precisão por este meio,
e neste caso apenas é necessário fazer passar a luz directa do sol através deles…”
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As dores de parto da fotografia, são estas enquanto não se lhe encontrar algo que a estabilize e que nos tempos actuais designamos como fixador, na prática da fotografia clássica.
No último parágrafo deste documento, fazem alusão à sua incapacidade de estabilizarem os resultados, mas quem sabe se,
“…não é improvável que se venha a encontrar substância capaz de destruir este
composto, por afinidades simples ou complicadas.
Algumas experiências sobre este assunto já foram imaginadas, e um relato dos
seus resultados poderá surgir num futuro número dos Jornais.
Nada mais se deseja do que um método para evitar que as partes não
sombreadas do resultado delineado por exposição, se possam apresentar à luz
do dia sem escurecerem, para tornar o processo tão útil como elegante…”
Para começar a terminar este texto e regressando a este trabalho “A Cadeia da Relação”, que está em exposição e que é a razão principal e de ser para este texto que vos quero deixar, acrescento que construir e adaptar câmaras com estenopos, exige dedicação plena, pois cada câmara é uma câmara específica, com resultados sempre diferentes de qualquer outra, seja no seu manuseamento, seja no tempo de exposição fotométrico exigido em função do diâmetro do buraco, seja na quantificação de outros parâmetros técnicos a considerar, tais como as características do material fotossensível em uso, das suas falhas de reciprocidade em longas exposições e etc., e etc., e etc., e etc. e etc. e etc. e etc., e etc., e etc. e etc. e etc. e etc., e etc., e etc., e etc. e etc. e etc. e etc., e etc., e etc. e etc. e etc.!
Para os que não o sabem, este fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos, tem um enorme conjunto de câmaras estenopeicas que resultaram da adaptação de câmaras fotográficas convencionais, em que as respectivas objectivas, foram substituídas por uma placa com um pequeno buraco, o estenopo, sejam para os formatos de película 135, ou 120, sejam câmaras de maior porte e que comportam chapas fotográficas de 9x12cm ou de 4×5”, ou outros formatos disponíveis em material fotossensível clássico.
Outras das suas câmaras estenopeicas, resultam da adaptação de latas e caixas diversas, com tamanhos diferentes entre si, umas mais panorâmicas e alongadas que outras e acima de tudo, com resultados muito diversificados em função do estenopo que lhes foi aberto, da distância deste ao local onde a luz se vai projectar, pelo que dada a frescura e graça da afirmação, não posso deixar de referir o que o próprio disse sobre uma câmara que esteve a ensaiar há pouco tempo e resultou da adaptação de uma caixa de transporte de um determinado licor,
“…Beirão de Honra em banco de ensaio a 30 de março de 2025
Não querem mesmo que pare.
Quando julgava que ficava pelo licor Beirão-100anos…
Eis que me oferecem uma caixa de Carvalhas.
Pena ser vazia…
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No desenvolvimento dos respectivos projectos, o fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos, usa toda esta panóplia para a captura das fotografias que pretende.
Trata-se de uma belíssima e enorme orquestra clássica, dirigida por este maestro, que conhece e sabe bem o som e as notas visuais que cada uma das dezenas de câmaras que possui lhe podem oferecer.
Para tal, teve que estudar e ensaiar cada uma delas, durante horas, dias, semanas, meses, com os múltiplos suportes fotossensíveis que sabe vir a utilizar e que tanto podem ser filme fotográfico monocromático, usualmente sensível a toda a gama de radiações do espectro visível, como papel convencional para impressão fotográfica, com uma gama de sensibilidade cromática mais reduzida, pelas suas características próprias e que não convocarei para aqui, embora sejam um mundo a estudar e que ele domina na perfeição, ou não fosse químico por ormação.
Quando parte para o terreno, sabe e passo a citá-lo de novo:
“,,,a Fotografia começa no cérebro e a Fotografia Estenopeica abdica da presença da lente e assume a “Camera Obscura” como objecto essencial a um discurso fotográfico muito pessoal…”
“…o meio é importante, mas não é o fim em si.
A fotografia que resulta de cada um, é…”
Só um maestro como ele consegue dirigir tamanha orquestra, em que cada um dos instrumentos que toca, toca sempre de um modo tão afinado.
Pelo que tenho vindo a expressar, pareceria estar apenas a destacar a habilidade técnica, mas ressalvo que não é assim, pois cada captura por ele executada, é um momento de profundo respeito pela fotografia em estado puro e remete para os seus tempos originais, assim como para a sua história e cultura.
Cada fotografia é pensada antecipadamente em todos os parâmetros da sua execução, que como o filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser (1920/1991), no “Ensaio sobre a fotografia – para uma filosofia da técnica”, afirma
“…a fotografia nada tendo nada de mágico, pois é técnica pura,
no entanto é imagética, pois vive de magias…”
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Destas magias resultam, através de muita elaboração e pensamento prévio, os resultados finais que o autor coloca em cada produção, oferendo-nos a ver as fotografias que estão aqui, para nosso deleite.
Desenganem-se já todos aqueles que veem ou julgam que se trata apenas de um jeito exótico de fotografar com caixas ou latas, ou outros artefactos, nos quais se abriu um buraco de pequena dimensão, pois de todos os processos que a fotografia nos permite e oferece, este é aquele que melhor nos remete para a sua história, ou melhor, para as muitas histórias que há dentro da sua história, que mais não é que a história da nova arte de desenhar, conforme o que nos fica dito por muitos historiadores da Fotografia, que a apontam como tendo começado no séc. XIX, algures nos anos de 1826 ou 1827, dando-lhe como primeira imagem desta nossa aventura histórica tão recente, o Point de vue du Gras, o qual resulta de uma tomada de vistas feita a partir da janela da casa do gravador Joseph Nicéphore Niépce (1765/1833), em Saint-Loup-de-Varennes, próximo da cidade de Chalon-sur-Saône, que após outros ensaios feitos provavelmente desde 1814’s(?), mas menos sucedidos, considerou ter tido neste ponto de vista o sucesso suficiente.
O seu método é muito simples.
Numa das muitas chapas de estanho que utilizava em gravura, passou uma fina camada de Betume de Judeia e colocou-a dentro de uma camera obscura.
Ao fim de cerca de seis horas de exposição, obteve resultados ténues, mas reais, após o processamento e estabilização da mesma, numa solução de lavanda misturada com ácido nítrico.
Os primeiros passos na estabilização das gravuras executadas com o auxílio do sol, ou seja, heliogravura ou heliografia, mas sem uso de estiletes ou de pontas-secas ou brunidores, auxiliados pela mão, estão dados. Os passos que nos trarão até à fotografia, começaram.
Daí até aos dias de hoje, foi sempre a desenvolver, não sem antes, no dia 19 de Agosto de 1839, ter acontecido em Paris, a oficialização política e científica da daguerreotipia, num acto público, que juntou os membros da Academia de Ciências, assim como os membros da Academia de Belas-Artes e a Assembleia de Deputados, com a presença do Rei Louis Filipe I (1773/1850), apelidado como o “Rei Cidadão”, numa cerimónia de consagração dos desenvolvimentos conseguidos pelo pintor, cenógrafo e diaporamista, Louis Jacques Mandé Daguerre (1787/1851), onde, neste acto formal, François Jean Dominique Arago (1786/1853) físico astrónomo, cientista, deputado e futuro Primeiro-Ministro de França, na sua qualidade de secretário permanente da Academia de Ciências, apresentou e proclamou,
“…a daguerreotipia, nova arte de desenhar,
processo inventado por Niépce e aperfeiçoado por Daguerre,
em que a França deve com toda a nobreza, oferecer este processo a todo o mundo…”.
Daguerre, depois de ter tomado conhecimento por um mero acaso, dos resultados obtidos por Niépce, escreveu-lhe uma carta em 1828, onde afirmava que:
“…ardo de desejo para ver os seus ensaios e experiências ao vivo…”
Na sequência e posteriormente, assumiram um contrato de partilha de experiências e conhecimentos, mas após o falecimento de Niéce em 1833, demorou cerca de cinco anos em sobressaltos e insucessos até encontrar solução para algo que dominava mal.
Quanto à divulgação antecipada no jornal francês “Le siècle” e como promoção mundial da futura oficialização pelo Estado da daguerreotipia, este assunto mereceu tradução e transcrição feita por Alexandre Herculano, para a revista Panorama, em Lisboa e a partir do texto original, nesse mesmo ano de 1839.
Refira-se que os daguerreótipos, na sua complexidade executiva, aconteciam ao fim de um tempo de exposição na captura da imagem, de cerca de uma hora sob luz zenital.
Foi no ano de 1838, que foram executados os daguerreótipos da Boulevard du Temple, em que Paris nos é mostrada só com edifícios e sem ninguém, numa das capturas feita durante quase uma hora e no daguerreotipo seguinte, feito um pouco mais tarde, ficou registada a silhueta de um homem a engraxar as botas e o respectivo engraxador, pois os mesmos estiveram parados durante a captura.
Ainda sobre este assunto, tendo sido assim, não foi bem assim, pois por razões económicas, tanto Arago como Daguerre, os quais tinham como objectivo ganhar muito dinheiro com este processo inovador de captura de imagens, pretendiam fazer a venda por todo o mundo da patente, assim como dos métodos de execução desta nova tecnologia de captura de imagem, assunto relativo ao qual e enquanto puderam, foram pondo à margem tudo e todos os que lhes pudesse barrar ou não avançar neste seu desígnio exclusivamente comercial.
…Em Inglaterra, os direitos de utilização, eram pagos a Claudet, agente de Daguerre…
Assim sendo, e continuando com a firta dos acontecimentos, refira-se que Arago foi visitado em Paris, pelo inglês William Henry Fox Talbot (1800/1877), o qual após tomar conhecimento do que estava ser preparado em França, para divulgação com muita pompa e circunstância, lá mais para o verão e para o tal dia 19 de Agosto de 1839, mas entretanto já devidamente noticiado, como referido atrás, tomou a decisão de ir a Paris, para também dar manifesto dos seus ensaios e investigações e dar manifesto da execução do resultado em negativo, da janela reticulada da Lacock Abbey, executado por ele, em 1835, tendo sido polidamente mandado de regresso, com a indicação de interesse, mas em que de facto o seu método não foi devidamente referido na Academia de Ciências francesa.
Conforme o texto publicado na Revista Litterária, do Porto, em 31 de Janeiro de 1839, Fox Talbot já tinha feito a divulgação perante a Real Academia de Ciências de Londres, de um método designado por,
“…Calotype ou “photogenic drawing”,
processo segundo o qual,
os objectos por si mesmo se desenharão, sem socorro do lápis,
sobre uma folha barrada com nitrato de prata e colocada dentro de uma camera obscura…”
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Os photogenic drawing, designados por vezes, como desenho bonito ou calótipo, eram obtidos om uma pequena camera obscura, na qual, papel de aguarela sensibilizado com nitrato de prata, era colocado no interior da mousetrap camera, assim baptizada pela sua esposa e após cerca de quinze minutos a meia hora de exposição, o resultado era mergulhado numa solução aquosa de hipossulfito de sódio e permanecia estável.
Os seus resultados ficavam em negativo, posteriormente positiváveis por contacto directo sobre material sensível equivalente, enquanto os obtidos por Niépce e Daguerre, depois de terminado o processamento das chapas metálicas, criavam a ilusão de serem positivos directos.
Ao que consta, terá sido o seu amigo, John Frederick William Herschel (1792/1871), diplomata, matemático, astrônomo, além de químico, quem lhe terá dado os ensinamentos sobre as propriedades solventes do hipossulfito de sódio.
O fixador que ainda se usa nos tempos de hoje, estava encontrado desde esses tempos, embora não seja uma descoberta de Herschel, pois há relatos de 1799, do médico e anatomista francês, François Chaussier (1746/1828), o qual, nos seus documentos havia referido as propriedades solventes de sais de prata, do hipossulfito de sódio, o nosso futuro fixador.
Herschel, foi o cientista que tornou recorrente na Europa, a partir de 1839, o termo negativo e positivo e passou a designar como photography, os photogenic drawings de Fox Talbot.
Atente-se no título “The Pencil of Nature”, escolhido por Talbot, para a edição em seis séries, entre 1844 e 1846, pela editora londrina Longman, Brown, Green & Longmans, dos seus calótipos ou photogenic drawings, que nos diz e bem, que a luz é o lápis da natureza.
Voltando às questões da divulgação da daguerreotipia por Arago e Daguerre, não se pode deixar de mencionar que os resultados altamente evoluídos para os parâmetros da altura, obtidos de Hippolyte Bayard (1801/1887), também membro da Academia de Ciências de França, conseguidos em cerca de cinco a dez minutos de exposição, na captura, também ficaram na gaveta dos pendentes.
Dramaticamente, devido a esta exclusão intencional por parte de Arago, de divulgar o seu processo de obtenção de imagens por acção da luz, levaram Bayard a simular a sua morte por afogamento e a registar-se nesses preparos enviando a Arago, em Outubro de 1840, uma carta-manifesto político, perante tal atitude de exclusão.
Diga-se que a sua morte como “l’ennui”, não ocorreu de facto nessa altura, mas o teor da carta mexeu bastante com Arago e com a Academia, só que no entanto os despachos reais não regrediram.
As partes mais significativas são estas:
“…O cadáver do cavalheiro que se vê é o do Sr. Bayard, inventor deste maravilhoso processo que estão a presenciar.
Tanto quanto se sabe, este infatigável pesquisador, demorou três anos em investigações.
Embora ele considere os seus desenhos imperfeitos, quer a Academia, quer o Rei,
assim como todos os outros que os viram, ficaram profundamente admirados,
o que muito o honrou.
No entanto, o governo tudo deu ao Sr. Daguerre e afirmou que nada poderia dar ao Sr. Bayard.
Por esse motivo o pobre afogou-se…
“…esquecido no necrotério por vários dias, ninguém foi reconhecer o seu corpo.
Senhores Deputados, é melhor não terem receio de ofender o sentido do olfacto, pois como se pode observar, o rosto e as mãos do cavalheiro estão a começar de apodrecer e a cair…”
Paris, 18 de Outubro de 1840
O francês Hercule Romuald Florence (1804/1879), chegado ao Brasil, em 1824, dois anos depois da respectiva independência em relação a Portugal foi viver em Campinas, onde casou com Maria Angélica Alves Machado e Vasconcellos, filha do Governador Francisco Alves Machado, o qual há-de ser nomeado Conde de Agarez, por decreto de D. Manuel II, com data de 5 de Novembro de 1908, conforme a revista “O Recreio” de 1841 publicada em Lisboa, onde é referida a invenção de H. Florence, que ele situa no ano de 1833.
No seu livro, “L’Ami des Arts Livré à Lui-Même”, refrido também como “Livro de anotações e primeiros materiais”, começado a escrever em 1837, refere que:
“…outra descoberta minha, conhecida tambem nesta villa e por algumas pessoas do Rio de Janeiro, é a Photographia;
O escripto que foi enviado a Paris, levava no fim estes dois títulos:
“Descoberta da Photographia, ou Impressão pela luz solar”.
“Indagações sobre a fixação das imagens na camara escura, pela acção da luz”.
Um desenho phographiado por mim foi apresentdo ao Príncipe de Joinville e posto no seu album,
Acabo de saber por uma pessoa a quem devo este favor,
….fui informado que na Allemanha se tem imprimido pela luz e
que em Paris se está levando a fixação de imagens a muita perfeição.
Como tratei pouco da Photographia, por precisar de meios complicados
e de sufficinetes conhecimentos chimicos,
não disputarei descobertas a ninguem,
porque uma mesma idéa pode vir a dus pessoas…”,
Afinal o termo fotografia circulava no Brasil, quase seis anos antes de o mesmo surgir pela Europa.
“… J’ai donné à cet art le nom de Photographie, parce la lumière y joue le premier role…”.
A partir da década de 1840’s, após muitos ensaios e experiências a fotografia ganha estatuto e a evolução dos materiais fotossensíveis progride para a obtenção de resultados que passam das horas para os minutos, destes para os segundos longos e destes para frações de centésimos e milionésimos do mesmo.
Duma forma muito simplificada e para abreviar, o tempo dos anos 1850’s, das chapas sensibilizadas e referidas como colódios humedecidos, transitará para os colódios secos e destes para a sua indústria vai ser um pulo. A Eastman Dry Plate Company, fundada nos inícios de 1880’s em Rochester, por George Eastman e Henry A. Strong, produzia e comercializava placas fotográficas secas.
Mais tarde, em 1884, foi reorganizada como Eastman Dry Plate and Film Company.
Trata-se da Kodak do séc. XX, que marcou a fotografia com um conceito muito simples, “You press the button, we do the rest”.
Penso que muito de nós temos presente nas nossas memórias, nomes desta e doutras marcas de material fotossensível.
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De novo e regressando a est’ “A Cadeia da Relação”, o fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos, por comparação com o que está descrito atrás, tem exposições que variam entre os cerca de 180 segundos e os 12000 segundos, onde o tempo tem tempo para se envolver com a luz e vice-versa, acontecimento ao qual não podemos deixar de associar o facto de a terra estar em rotação sobre o seu eixo à velocidade de cerca de 1670 km/h, sendo o assunto que está ser registado iluminado por uma luz que não para e se movimenta a cerca de 460 metros por cada segundo que passa, introduzindo factores de análise que não se compaginam com os conceitos da fotografia instantânea.
Estas são fotografias muito reflectidas antes de serem produzidas.
Estas são fotografias longas, para serem sentidas por via do nosso olhar e pensarmos muito sobre elas.
A propósito deste e todos os outros projectos desenvolvidos e apresentados pelo autor, seja em exposição, seja em livro, temos o privilégio de ver, como hoje e aqui na Torre do Tombo, o que ele próprio define como “uma partida fácil para um percurso exigente”, com um conjunto altamente coerente de fotografias discretas, densas, misteriosas, com sons e poética incorporados, surreais e impactantes, tal como o próprio autor, no qual em cada imagem e cito-o de novo, para repetir que a
“…Luz foi captada com Tempo e o Tempo ficou incorporado nas Fotografias…”
Sobre esta mesma questão, o autor diz sobre uma das suas fotografias inserida no livro “Luz Nos Livros”, com edição de 2019, da “Tinta da China”: executada na Colecção Ephemera de José Pacheco Pereira, na qual está um relógio que parece não ter ponteiros, embora os tenha na realidade,
“…nesta fotografia com seis horas de tempo de exposição,
desaparecem os ponteiros do relógio.
E o Tempo fica representado numa só imagem que contém vastas horas de exposição…”
cujos primórdios, como deixei em aberto na descrição do princípio físico do quarto escuro, podem ser remetidos para muitos milhares de anos antes de nós.
Quase a terminar, alego perante os que tiveram a coragem de me ler até aqui, que fui privilegiado pois pude olhar antecipadamente, este vasto conjunto de fotografias.
Fi-lo muitas vezes, repetindo, repetindo e repetindo o percurso de análise e também porque sei que sempre que olho o trabalho de um fotógrafo que me cative, o que é o caso, há memórias que me são convocadas, por vezes de um modo objectivo, noutros casos muito subjectivamente, tal como a qualquer um de nós, pelo que vos afirmo que pressenti nestas imagens tão silenciosas e surreais, muitas figuras a deambular dentro delas, seja nos “quartos de malta” ou nos “quintos do inferno da ralé”, pois nelas há rastos múltiplos, com o tempo a permitir que a luz que tocou os assuntos, nos toque interiormente.
Os passos ou sons visuais que pressenti, podem ser os de Ana Plácido, a paixão de Camilo, ou os do médico que ficou associado ao crime da Rua das Flores, Urbino de Freitas e amigo deste…ou será que estes sussurros que perpassam por aqui são do assaltante falsamente romântico, conhecido como Zé do Telhado, ou do jornalista e político republicano, João Chagas, preso por no dia 31 de Janeiro de 1891, ter pretendido antecipar a República em Portugal?
Aqui fica lavrado um enorme agradecimento ao António Campos Leal, por nos dar a ver este trabalho fascinante e misterioso em que o Tempo e a Luz e a Luz e o Tempo, se envolveram de um modo tão poético quanto magistral, dando destaque a um texto-poesia do fotógrafo, publicado na sua página das redes sociais, neste mês de abril, águas mil, em que eu o sinto-o tal como se define a si próprio,
“…Toda a Luz que vejo me cega
A amarro em imagens ditas fotográficas
Serão percurso no Tempo
E o Tempo as libertará…”
Para reflexão, neste final dos finais, lanço o mesmo desafio que costumo colocar aos meus alunos iniciantes, desde há quatro décadas a esta parte, no meu Ar.Co de sempre, nas sessões de ensino/aprendizagem em Fotografia, onde na sua componente da História da Fotografia e da sua Cultura, o mais significante é sabermos olhar e analisar o passado, para tentar perceber e entender o presente e assim se conseguir perspectivar o hipotético futuro.
Na componente técnico-científica, a primeira questão que lhes coloco para entenderem a fotografia, nos seus procedimentos e vos coloco agora, costuma ser sempre esta:
Já pensou em fotografar com latas de bolos?
As de chá também servem!
A quantidade de coisas de que me fui lembrar para partilhar, sob o pretexto de falar deste trabalho d’ o fotógrafo que guarda a luz e o tempo, em caixas com estenopos.
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Lisboa, 27 de Abril de 2025
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António Campos Leal, Cadeia da Relação do Porto
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Susana Paiva escreve:
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“A Fotografia É O Percurso da Luz no Tempo”
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A fotografia, mais do que uma imagem, é o vestígio de uma travessia. A frase “A Fotografia É O Percurso da Luz no Tempo” abre-nos um campo de reflexão que transcende a técnica ou a estética – ela propõe uma ontologia da imagem, um modo de pensar o visível como aquilo que se inscreve na matéria a
partir da luz.A luz, condição primária da visão, torna-se aqui sujeito do verbo. Ela percorre, move-se, toca superfícies, atravessa espaços, desenha formas. Mas o seu percurso, que por natureza é efémero, ganha inscrição duradoura quando captado pela fotografia. O que se grava não é apenas a aparência de um instante, mas a própria passagem do tempo – fixado na superfície sensível do filme, do papel fotosensível ou nos sensores digitais de um mundo contemporâneo.
Assim, cada fotografia é um lugar de trânsito. Não um ponto fixo, mas um fragmento suspenso onde o tempo se deteve – ou, mais precisamente, onde o tempo se tornou visível. Ela mostra não apenas o que foi visto, mas o modo como luz tocou o mundo naquele irrepetível momento. A fotografia é um vestígio de uma relação física com o real, uma memória luminosa que se fez matéria. A fotografia estenopeica é talvez a forma mais elementar e poética de fazer imagem. Uma caixa escura, um pequeno orifício, uma superfície sensível à luz. Utilizando apenas tempo e luz, ela devolve à fotografia a sua dimensão artesanal, quase alquímica, onde o gesto importa tanto quanto o resultado.
Neste processo, o tempo torna-se tangível. Como a luz entra lentamente pelo pequeno orifício, inscrevendo a cena num papel fotosensível, a imagem não é apenas captada – é construída. Formada na, e pela, duração, ela restitui à fotografia aquilo que os dispositivos digitais aceleraram até quase anular – a experiência da espera.
A fotografia estenopeica não vê como o olho vê – ela vê como a matéria sensível sente. As suas imagens vibram com a imperfeição do real, são fantasmas de luz, rastos que contam não apenas o que foi, mas como o tempo foi vivido pelo corpo da câmara obscura. E nesse sentido, ela é uma intensificação do que toda fotografia já é, o percurso da luz no tempo.
Há algo de profundamente paradoxal neste gesto, fixar o que, por natureza, não se fixa. Capturar o fluxo, deter o instante, torná-lo legível. Neste paradoxo reside a potência poética da fotografia – não como simples documento, mas como inscrição de uma ausência.
Aquilo que vemos numa imagem fotográfica já lá não está. O que permanece é o seu rasto, a luz que o percorreu, o tempo que o atravessou. Talvez seja por isso que as fotografias nos comovem, porque contêm mais do que mostram. São presenças de uma ausência, espectros de uma duração intangível.
Ao olhá-las, sentimos o tempo, intuímos a perda, pressentimos a nossa própria finitude.Cada fotografia é um eco do real, uma memória da sua impermanência – e, ao mesmo tempo, uma negação silenciosa do esquecimento.
A frase “A Fotografia É O Percurso da Luz no Tempo”, de António Campos Leal, propõe-nos, afinal, uma ética da atenção e uma ontologia da transitoriedade.
A imagem fotográfica não é apenas vestígio, mas espelho da condição humana – atravessada pelo tempo, tocada pela luz, condenada ao desaparecimento. Fotografar é reconhecer essa fragilidade e escolher, mesmo assim, fixar o que passa. É um gesto contra o esquecimento – não para o vencer, mas para o tornar visível.
Vilém Flusser, ao analisar a fotografia como um “texto técnico”, lembra-nos que as imagens fotográficas pertencem a uma nova forma de linguagem, onde o aparelho condiciona o gesto do fotógrafo. A câmara, segundo Flusser, é um “programa” que delimita as possibilidades da criação. A fotografia estenopeica, no entanto, subverte esse automatismo, ela resgata o gesto humano, o improviso, o corpo. Neste gesto, há resistência, um modo de reconquistar o que Flusser chamaria de !liberdade contra o programa” – uma atitude existencial que reaproxima o humano da criação.
Giorgio Agamben, por sua vez, ao pensar a imagem como aquilo que nos separa do real e simultaneamente nos reconcilia com ele, ajuda-nos a compreender a fotografia como uma zona de indiscernibilidade entre presença e ausência. A fotografia mostra o que resta – aquilo que subsiste quando o vivido se retira. Como sugere Agamben, a imagem é um dispositivo onde o passado e o presente se entrelaçam, tornando visível aquilo que a experiência comum tende a ocultar. A fotografia é, nesse sentido, uma forma de habitar o intervalo entre o que foi e o que já não é – um estado que Agamben reconheceria como potência pura, imagem do possível.
Talvez fotografar seja uma forma de pensar – com os olhos, com as mãos, com a matéria do mundo. Um modo de estar no tempo e de reconhecer, na sua passagem, aquilo que nos constitui – a busca por sentido[s], o desejo de presença, e a incessante tentativa de fixar o instante antes que ele desapareça.
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António Bracons, Aspetos da exposição, 2025
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A exposição “Luz e Tempo: Viagem pela memória e democracia. A Cadeia da Relação do Porto pela fotografia de António Campos Leal” está patente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na Alameda da Universidade, em Lisboa, de 26 de junho a 19 de setembro de 2025, de 2ª a 6ª feira, entre as 09.30h e as 19.30h e ao sábado entre as 09.30h e as 12.30h.
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António Bracons, António Campos Leal, ANTT, Lisboa, 26.06.2025
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António Campos Leal é fotógrafo profissional e professor de fotografia.
Químico por formação dedica-se à prática fotográfica desde 1969.
Apaixonou-se pela Fotografia enquanto estudante, o seu curso de Preparador Químico proporcionou-lhe uma formação que sustentou o alargamento de conhecimentos técnicos variados.
Esteve ligado à Comunicação Social durante vários anos. Na década de 90 deixaria os jornais e colaboraria no arranque de um Estúdio surgido no Porto, passando mais tarde a colaborar com o Departamento de Óptica Electrónica do INESC-Porto.
Trajecto diversificado relativo à divulgação da fotografia, levaram-no ao ensino de diferentes matérias em variadas instituições, dedicadas ao ensino da Fotografia.
A sua aproximação à Fotografia Estenopeica (vulgo pinhole) verificou-se na década de 1970, a que retornaria em finais dos anos noventa e resultando na criação de um grupo de trabalho denominado de clube “buracodeagulha”, dando resposta ao interesse demonstrado por alguns dos seus alunos no curso profissional do Instituto Português de Fotografia – Lisboa. Surge a prática deste processo como matéria extra-curricular a que aderiram alguns alunos e que se desenvolveu ao longo de mais de uma década até à sua saída do IPF.
Tem dado múltiplas conferências e cursos sobre fotografia estenopeica, feito diversas exposições e tem vários livros publicados.
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Pode conhecer mais sobre a obra de António Campos Leal no FF, aqui.
Pode ler outros ensaios de José Soudo, no FF, aqui, aqui e aqui.
Pode saber mais sobre Susana Paiva no FF, aqui.
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O catálogo pode ser consultado aqui.
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Cortesia: António Campos Leal, José Soudo e Susana Paiva.
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