JÚLIA VENTURA,1975-1983
Exposição na Culturgest, em Lisboa, de 18 de maio a 29 de setembro de 2024.
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As imagens são (em parte) conhecidas. Familiares. O rosto é conhecido. Quem já viu algumas destas fotografias, não as esquece. Pela expressão, pela densidade dos cinzas e dos pretos, pelo olhar, pela mão que segura a rosa (quando a rosa está presente). Pela coerência da obra. Sempre (ou quase), é a fotógrafa que se fotografa, cada retrato é uma autorrepresentação.
E a sua série Sem título (FLPB), de 1977, os traços de luz, uma escrita ou desenho com luz que faz a imagem, sobre a ‘imagem’ – ‘retrato’ – fotográfica. Como que um paradoxo da fotografia.
Visitar esta exposição, ver de forma sistemática os seus trabalhos iniciais, um corpo coerente e independente, trabalhos essencialmente fotográficos (também algum vídeo e 3 desenhos sobre papel, que se incluem, porque depois se traçam com luz…) e que influenciam toda a sua obra posterior, é uma forma de entrar na obra de Júlia Ventura.
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Sobre a exposição, escreve o curador, Bruno Marchand:
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O trabalho inicial de Júlia Ventura (Lisboa, 1952) constitui uma das mais poderosas reflexões que o contexto artístico nacional produziu sobre as questões da representação e sobre o impacto que os sistemas de disseminação da imagem contemporânea nelas desempenham. Dedicada aos primeiros oito anos de produção da artista, esta exposição reúne um corpo de trabalho que esteve perfeitamente sintonizado com os movimentos artísticos, sociais e intelectuais que, à época, se debruçaram sobre os fenómenos da comunicação e da significação com o intuito de revelar o modo como imagens, textos e outros signos são facilmente instrumentalizáveis a favor de uma padronização de comportamentos, identidades, valores ou expectativas.
Organizadas cronologicamente, as obras aqui presentes permitem-nos descobrir o modo como as alusões iniciais de Júlia Ventura a fenómenos da cultura de massas, como a moda, ou as incursões pontuais pelo campo da fotografia experimental deram rapidamente lugar a uma concentração da artista num conjunto estrito de recursos e estratégias autorreferenciais. Tendo no próprio corpo a sua matéria por excelência, e fazendo uso de uma ampla panóplia de (ora pequenas, ora grandes) variações de poses, gestos e expressões faciais, o trabalho de Júlia Ventura cedo se constituiu como uma crítica magistral à representação e à unidade simbólica da imagem.
As sete salas que compõem esta exposição dão a ver mais de vinte séries de trabalho da artista, entre fotografia, desenho, vídeo, texto e instalação, a maioria das quais permanecia inédita. No seu conjunto, estes trabalhos indiciam um percurso que, nos anos seguintes, se consolidou em torno das problemáticas da autorrepresentação e da ficção do próprio, as quais têm um eco fecundo nas discussões hoje em curso sobre temas de identidade e de género. Então, como agora, o que está em causa é a desconstrução do edifício retórico da imagem: pôr a nu os seus códigos e as suas operações latentes ao colocá-los ao serviço da representação de um sujeito-imagem em permanente devir, infinitamente reencenado, impossível de fixar, para sempre múltiplo e ambíguo.
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Júlia Ventura, Sem título (FLPB), 1977 – Sem título (TPA), 1975
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Na folha de sala, é feita uma introdução a cada um dos espaços expositivos. Apresento alguns aspetos da exposição enquanto visito as salas.
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Sala 1
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As primeiras séries de obras concebidas por Júlia Ventura simulam sessões de fotografia de moda. Na aparente simplicidade desta proposta está contido todo um programa que se virá a desenvolver e a sofisticar nos anos seguintes. Aqui indiciam-se, desde logo, a predisposição da artista para a encenação, a mimese ou a criação de personagens, bem como o seu interesse nas estratégias levadas a cabo pelos sistemas que, como a indústria da moda e as revistas que a promovem, almejam estabelecer e disseminar cânones relativos às noções de beleza, elegância, estilo ou feminilidade. Mais do que um simples jogo de espelhos, estas séries assinalam o despontar da consciência crítica da artista e a sua apetência pela desconstrução de aparatos e expectativas no campo da representação, fenómenos que culminam, aqui, na pungente androginia da figura patente em Sem título (TPA).
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 1, 2024
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Sala 2
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A série de imagens aqui apresentada regista um conjunto de performances que obedeceram a uma mesma lógica e a um mesmo protocolo. Num primeiro momento, a artista foi fotografada às escuras, numa longa exposição, enquanto fazia um desenho de luz no espaço através do recurso a um ponteiro. A dada altura dessa performance, o espaço foi iluminado, permitindo sobrepor ao desenho já inscrito no fotograma a imagem do corpo da artista ainda em pleno ato. Imbuída de um espírito experimental e diretamente enquadrável nas práticas estruturalistas da época, esta série lida com os elementos fundamentais da fotografia para nos devolver um registo onde desenho, escrita e fotografia se fundem para dar origem a uma coleção de imagens híbridas, e multidimensionais.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 2, 2024
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Sala 3
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Um dos dados mais assinaláveis do trabalho inicial de Júlia Ventura é a sua economia de meios. Se, por um lado, a artista se concentrou quase exclusivamente na criação de imagens onde a própria aparece representada, por outro, o que acontece dentro dessas séries (e mesmo entre séries) é fruto de um trabalho circunscrito à variação de poses, de expressões ou de gestos. Tudo se joga em declinações, ora mais subtis, ora mais ostensivas, de um conjunto muito diminuto de recursos. Sob a égide do vídeo que nela pontifica, esta sala dedica-se a explanar um desses recursos—as mãos. Elementos essenciais na arte do retrato, as mãos são tidas como portas de acesso ao estado de espírito do retratado. Aqui, porém, elas parecem ser mais do que símbolos passivos de uma disposição particular; elas parecem ser agentes de uma força externa que impõe ao corpo dinâmicas que vogam ambiguamente entre a carícia e a agressão, a delicadeza e a crueldade.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 3, 2024
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Sala 4 / Corredor
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Neste espaço repõe-se, com algumas adaptações, uma das raras instalações que Júlia Ventura concebeu em todo o seu percurso. Originalmente apresentada em Groningen, na Holanda, a obra parte de um momento em que a artista sujeita o visitante a uma sobreestimulação visual para depois o conduzir a uma sala obscurecida, de cujas paredes são emitidas gravações da sua voz recitando textos que versam sobre silêncio, escuridão, memória, imagem, revelação, desejo ou perda. No corredor, esta abordagem reflexiva e melancólica encontra um antecedente menos operático, mas não menos complexo: Double Bound (n. 0 2) faz discorrer sobre imagens gémeas dois enunciados—um na voz do observador, outro na voz da retratada —que, embora simétricos, coincidem na constatação final de que, no momento de apreensão, algo lhes escapa. Se essa feita é, por um lado, a razão nostálgica do tom destas obras, ela não deixa de ser, também, o motor incansável que alimentará o ímpeto quer pela produção, quer pela experiência de novas imagens.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 4 / Corredor, 2024
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Sala 5
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Uma das mais surpreendentes características do trabalho de Júlia Ventura é a amplitude de registos que consegue extrair de um conjunto muito estreito de recursos. As séries presentes nesta sala—tão diversas no que respeita aos humores, temperamentos, posturas ou estados de alma neles plasmados—são testemunho direto dessa capacidade. Apesar destas amplitude e diversidade, não é raro sentirmos que há qualquer coisa de familiar em todas as séries da artista—algo que nos diz respeito. Claro que em todos nós, espectadores, existe um mundo amplo e diverso, mas aquilo que garante o nível de identificação que aqui podemos sentir é a gestão cuidadosa que a artista faz do intervalo entre cada uma das suas imagens. Trata-se de oferecer apenas e toda a informação necessária para que nos sintamos impelidos a preencher os vazios elípticos que subsistem entre imagens com as nossas próprias projeções (também no sentido psicanalítico do termo) e a fazermos do todo uma entidade que incorpora, em parte substantiva e não apenas interpretativa, a nossa própria subjetividade.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 5, 2024
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Sala 6
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À luz de um vídeo da boca da artista a repetir, como um mantra, a expressão why?, encontra-se uma série de obras a que Júlia Ventura se refere como fototextos. Trata-se de um conjunto de fotografias feitas a partir de frases impressas em acetatos dispostos em cima de fundos brancos. A maioria destas frases provém do livro O Prazer do Texto, de Roland Barthes, um dos mais destacados estruturalistas franceses, e, pese embora a riqueza alusiva dos excertos, em nenhum deles figura o sujeito da frase. Nessa condição, estas obras são o correlato textual (se quisermos, são a ilustração em texto) da elisão do sujeito que as imagens de Júlia Ventura impõem. À força de serem constituídos apenas por predicados, verbos e advérbios, estes textos, como as imagens, encontram-se absolutamente despersonalizados, são pura sensação, cápsulas de um sentido sem um corpo nem um contexto definidos.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 6, 2024
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Sala 7
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O grande gesto de crítica e desconstrução das cargas simbólicas e ideológicas da imagem levada a cabo por Júlia Ventura encontra um nervo particularmente sensível quando se trata de questões relacionadas com a representação da sensualidade e/ou da sexualidade feminina. Na última sala da exposição, esse nervo é percutido insistentemente por via da presença ubíqua da rosa—o único elemento externo presente na obra de Júlia Ventura ao longo deste período inicial. O seu estatuto é, claro está, dúbio, ou não se encontrasse esta rosa a transitar infinitamente entre a sua proverbial aceção como símbolo da delicadeza e da virtude femininas e a sua função como instrumento da reivindicação inequívoca de um espaço de desejo e de prazer carnal. Como acontece em todas as outras séries desta exposição, o que está em causa não é propriamente colocar a imagem ao serviço da resolução de tensões morais ou sociais; é instalar no seio da imagem uma crise que abale o seu edifício retórico, que o mine por dentro apenas o suficiente para que mais claramente se lhe vislumbrem as estruturas.
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António Bracons, Aspetos da exposição, Sala 7, 2024
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A exposição “Júlia Ventura,1975-1983”, está patente na Culturgest, R. Arco do Cego, 50, ao Campo Pequeno, em Lisboa, de 18 de maio a 29 de setembro de 2024.
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No âmbito da exposição foi editado um catálogo:
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Júlia Ventura
Júlia Ventura 1975 – 1983
Fotografia: Júlia Ventura / Texto: Bruno Marchand, Sabeth Buchmann, Pedro Lapa / Coordenação: Mário Valente
Lisboa: Culturgest / 2024
Português e inglês / 21,5 x 26,7 cm / 248 págs.
Cartonado / 500 ex.
ISBN: 9789727691388
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Na capa e na contracapa, respetivamente uma fotografia da série inicial e final, que abre e fecha a exposição.
No interior, os ensaios: Bruno Marchand escreve “1975-1983: 2024”, Sabeth Buchmann, “No/Contra o Paradigma Pictórico” e Pedro Lapa “Os idiomas da imagem e o jogo infinito”. Para além dos ensaios, as fotografias. Cada série é apresentada com o título e a data, num fólio, depois as fotografias, uma por página, por vezes uma por fólio, por vezes duas, lado a lado, permitindo uma leitura naturalmente diferente da da exposição, mas onde cada imagem vive por si.
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Júlia Ventura nasceu em 1952, em Lisboa. Utiliza sobretudo o suporte fotográfico, embora tenha apresentado trabalhos em pintura e instalação. Vive em Lisboa e em Amesterdão. Expõe pela primeira vez em 1977, na Sociedade Nacional de Belas-Artes (Lisboa), mostrando desde então a sua obra em diversos museus nacionais e estrangeiros, destacando-se: Stedelijk Museum, Foto’s uit de Collectie: Robert Longo, Cindy Sherman, Júlia Ventura, Stedelijk Museum (Amesterdão, 1991), Two ways of life. Júlia Ventura, Centro Cultural de Belém (Lisboa, 1997), En la piel de toro, Palácio Velázquez, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madrid, 1997), Júlia Ventura, marcar imprimir expor, 1982-2003, Fundação de Serralves (Porto, 2004), e Júlia Ventura, Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) – Museu do Chiado (Lisboa, 2006). Representada em diversas colecções privadas e institucionais em Portugal e no estrangeiro, destacando-se a do Netherlands Media Art Institute (Holanda), Musée d’art moderne et contemporain (Suíça) e Fundação de Serralves (Porto).
Sobre a sua obra foram editados, além do catálogo desta exposição, Two ways of life. Júlia Ventura (cat.), Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1997 (no FF, aqui); Júlia Ventura, marcar imprimir expor, 1982-2003 (cat.), Porto, Fundação de Serralves, 2004.
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Sobre Júlia Ventura no FF, aqui.
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