DANIEL BLAUFUKS, OS DIAS ESTÃO NUMERADOS, 2024

Exposição no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, de 17 de julho a 07 de outubro de 2024.

.

.

.

Um diário é também um acto de resistência.

Daniel Blaufuks

.

.

.

A TRAIÇÃO DO TEMPO

.

Este diário é exemplo maior da tarefa que Daniel Blaufuks cumpre em todos os seus trabalhos de fotografia e vídeo anteriores ou paralelos. Em simples folhas A4, colocadas ao baixo, o artista numera os dias/anos que vão passando. Cola nelas fotografias instantâneas (raramente mais do que uma ou duas por página), alguns recortes de jornais e revistas, e manuscreve ou carimba, nas línguas que melhor domina (inglês, alemão, português, francês), algumas frases (muitas vezes suas, ou então citadas sem referência à autoria ou origem). Raramente estes diferentes elementos se relacionam segundo lógicas explicativas – a autonomia de cada um é apenas condicionada pela composição visual, e cada “dia” impõe uma marcada liberdade poética onde o poder da palavra escrita sustenta, muitas vezes, a banalidade repetitiva das imagens.

Criámos o tempo e logo nos sentimos cercados e devorados por ele. A memória é uma traição ao tempo. Tentamos, desde sempre e sem sucesso, fugir-lhe, anular o seu trabalho de erosão. Daniel Blaufuks que, transportando consigo e expondo ao mundo o peso de múltiplos tempos e memórias (familiares, pessoais, históricas, políticas, culturais, …), participa dessa tarefa de Sísifo.

A elaboração do diário (iniciado em maio de 2018 e de que aqui se expõe o ano de 2023, alguns dias de anos anteriores e, ainda, os primeiros meses de 2024) passou a ser, segundo Daniel Blaufuks, tarefa de uma vida. Expondo a sua memória, cruzam-se os seus dias e os dias do mundo. O artista reage ao que o rodeia lutando contra a voraz corrida do tempo sobre as coisas. Se não anula, pelo menos retarda o tempo, adiando o apagamento das coisas; mas é significativo que nomeie esta obra como um “não-diário”, e que se refira a “não-retratos” quando fala dos rostos de alguns dos interlocutores que fixa nessas páginas. Esta dupla classificação negativa é uma confissão de impotência que expõe a inevitável contradição de todos os registos de memória – a de que o seu destino é o esquecimento.

Na inexorável contabilidade produtivista do tempo (essa máquina trituradora de vidas), “os dias estão numerados”; mas o que neles se passou ou o que deles Daniel Blaufuks retém fica reduzido a uma imagem sem identidade, a uma frase “sem sujeito” ou a um facto (pessoal ou coletivo) sem contexto. Perdendo, muitas vezes quase imediatamente, o valor de um testemunho situável numa linearidade historicista, essas imagens integram um processo de amnésia coletiva e programada. Individualmente ou em conjunto, as páginas deste diário afirmam-se antes como uma sucessão de estados de espírito perante a manifestação do eterno retorno das coisas, das estações, dos lugares, dos factos… Face à previsibilidade dos cenários domésticos, marcados pela repetitiva presença de uma mesa e de uma janela, onde o rodar da luz marca as horas e o declinar das flores os dias; perante o carrossel vertiginoso das suas viagens, entre a banalidade das guerras e injustiças e o assinalar de alguns factos políticos e culturais mais notáveis, assistimos à morte inexorável de amigos seus e de heróis, ao despertar dos nenúfares no jardim, à exposição fantasmática do artista.

.

João Pinharanda

.

.

.

Esta exposição e o livro editado – que reúne uma parte das obras expostas, as correspondentes ao ano de 2023 – configuram um Diário, que é, por inerência, uma memória e reflexão pessoal, sobre o mundo, sobre o que o rodeia, as suas vivências, contactos, relações, preocupações, memórias e, sobretudo, um ensaio sobre a fotografia e as suas possibilidades.

Todos os dias Blaufuks regista pelo menos uma fotografia: instantânea, diapositivo, negativo cor ou preto e branco, digital… não importa o suporte. Importa a imagem, uma imagem. E, quantas vezes, essa imagem não é mais que aquela que está ali, quotidiana, sempre igual, sempre diferente: a mesa da cozinha e a janela à qual encosta. Já a vimos noutras vezes no seu trabalho, nomeadamente na série Attempting Exhaustion / Tentativa de Esgotamento. Por isso, ela está tantas vezes presente nas páginas deste diário. Mas não só.

Na grande nave do MAAT, de paredes brancas, as molduras brancas e as folhas brancas, formato A4, de suporte às imagens, aos objetos, aos textos – na maior parte dos casos manuscritos pelo autor. E cada folha, numerada na sua sequência, com um carimbo numerador, mecânico, anónimo, ordenando por um lado numa sequência (de calendário), por outro lado, introduzindo uma anonimização e impessoalidade na série – como algo exterior à fotografia, à folha, ao conteúdo do diário.

.

.

.

António Bracons, Aspetos da exposição, 2024

.

.

.

“Os dias estão numerados”, de Daniel Blaufuks, com curadoria de João Pinharanda, está em exposição no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, na Av. Brasília, em Lisboa, de 17 de julho a 07 de outubro de 2024.

.

.

.

No âmbito da exposição foi editado o livro:

.

Daniel Blaufuks

Os dias estão numerados

Fotografia: Daniel Blaufuks / Texto: João Pinharanda

Paris: JBE JCG Books / Lisboa: Tinta da China / Julho .2024

Inglês, português / 29,0 x 20,5 cm / 370 pp, não numeradas

Cartonado com sobrecapa parcial / Texto na capa e interior (título e colofon), manuscrito pelo autor, inglês; sobrecapa em português, com título manuscrito e texto em carateres gráficos, de João Pinharanda, nas guardas interiores, e no verso de introdução à obra.

ISBN: 9789896718527 / 9782365680943

.

.

O livro compila as folhas 1840 a 2206, correspondentes ao ano de 2023.

O livro reune as folhas do ano de 2023, o texto é o mínimo, o absolutamente necessário: título, autor e a essencial informação editorial, é manuscrito; numa sobrecapa, removível, acrescenta mais alguma informação em carateres de imprensa: o ensaio de João Pinharanda, nas guardas interiores, e no verso, uma introdução à obra.

.

.

.

Daniel Blaufuks tem trabalhado sobre a relação entre a memória pública e a memória privada, um tema que é uma das constantes interrogações no seu trabalho como artista visual, recorrendo principalmente à fotografia e ao vídeo e apresentando-o em instalações, livros e filmes. Em 2007, publicou Sob Céus Estranhos (Tinta-dachina) – baseado no seu filme de 2002 com o mesmo título –, que lhe valeria o prémio de melhor livro de fotografia na PhotoEspaña. Foi também premiado em 2007 pelo seu trabalho sobre um campo de concentração na República Checa, também apresentado no livro Terezín (Steidl, 2010) e no filme As If (2014). Em 2016, recebeu o prémio AICA pelas exposições Tentativa de Esgotamento e Léxico. Mais recentemente, publicou Não Pai (Tinta-da-china, 2019) e Lisboa Clichê (Tinta-da-china, 2021). É doutorado pela University of Wales, com uma tese sobre fotografia e cinema em relação com as obras de W. G. Sebald e Georges Perec, e com os temas da memória e o Holocausto. Os seus filmes – “fotografias expandidas” – têm sido apresentados em diversos festivais de cinema e os seus trabalhos mais recentes abordam a resistência à ocupação alemã na Bretanha e o colonialismo em São Tomé e Príncipe.

.

.

.

Pode conhecer mais sobre a obra de Daniel Blaufuks no FF, aqui. Sobre o livro “Attempting Exhaustion“, 2017, aqui, e a exposição “Tentativa de esgotamento, 2009-2016”, aqui.

.

.

.