BF22: MANUELA MARQUES, HENRIQUE PAVÃO, MARCELO MOSCHETA – DIANTE-DENTRO . 1

Exposição integrante da Bienal de Fotografia 2022, patente no Museu Municipal de Vila Franca de Xira, de 12 de novembro de 2022 a 26 de fevereiro de 2023.
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Integram a Bienal de Fotografia 2022 de Vila Franca de Xira, a exposição do Prémio da Bienal, da qual já apresentei alguns projetos (e em breve os restantes), mas também duas exposições que integram o projeto curatorial, este biénio, da responsabilidade de Ana Rito, composto por duas exposições: “Não Olhamos Duas Vezes a Mesma Imagem” e “Diante-Dentro”. Esta exposição integra obras de Manuela Marques, Henrique Pavão e Marcelo Moscheta (que agora visitamos) e de Noé Sendas, Daniel Moreira & Rita Castro Neves e Paulo Lisboa (em breve).

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Sobre a exposição escreve a curadora, Ana Rito:

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DIANTE-DENTRO

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Porque a imagem de uma coisa tem aspecto e forma semelhante

Àquele corpo do qual se diz que fluiu para vaguear,

E estas imagens, como películas desprendidas da superfície

Dos corpos das coisas, voam para um e outro lado através dos ares.

Tito Lucrécio Caro, A Natureza das Coisas

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Para Lucrécio as imagens são coisas e as coisas são imagens. De facto, só existe superfície, a qual se dobra e desdobra, onde não há diferença entre interior e exterior, entre aparência e profundidade. A materialidade de uma imagem, e a iminência do toque, manifesta-se na superfície tensional do mundo, transportando-nos, de quando em vez, para locais inacessíveis, implausíveis.

Simultaneamente próxima e distante, é este o paradoxo da imagem que procura o seu espectador, que quer vir ao seu encontro, a mesma que com ele exercita um jogo duplo em que a premissa parece ser a aceitação do fenómeno, do fascínio, da reversibilidade, do aurático: o aparecimento único de algo distante. Assim propôs a fotografia estereoscópica na construção de “imagens com relevo”: a mesma “terceira imagem”, resultante de uma experimentação única na história da imagem. Nesse jogo, aceitamos, enquanto espectadores, o lançamento dos dados, suspendemos o real e mergulhamos na ficção.

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Nota: Os textos que se seguem, e que acompanham as obras de cada artista, são objectos que se afastam do tradicional texto explicativo, articulando um conjunto de referências abertas e auto-citações que funcionam como pedaços de um caleidoscópio próprio em constante mutação (absorção e variação), como uma tradução ou nota de rodapé, aplanando um certo horizonte especulativo e poético.

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MANUELA MARQUES, Météores I e II, 2016 – Construction, 2019

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Manuela Marques, Météores I e II, 2016 – Construction, 2019

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Em suspenso, observamos os movimentos que se estabelecem na imagem e entre as imagens. Pensamos, assim, a imagem num sentido lato, enquanto aparição, revelação, tendo em conta os seus múltiplos circuitos e conexões; pensamos também esta imagem, num sentido mais específico, no seu dentro e no seu fora.

Tentamos perceber as orlas das imagens, mesmo quando o caminho deixa de ser visível ou legível: procuramos averiguar em que medida elas solicitam os próprios limites dos nossos sentidos. Percebemos então como o intervalo evidencia movimentos de diferenciação e de ausência de centro, de multiplicação de focos e perspetivas, de impossibilidade da forma, suspendendo a lógica para o aparecimento de novas ordens, sempre outras, sempre em movimento.

Superfícies que se dobram e desdobram equivocando aparência e profundidade.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2023

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HENRIQUE PAVÃO, Apollo, 2019

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Henrique Pavão, Apollo, 2019

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«Peso», do latim «pondus», define um corpo de qualquer carga determinada, produto da massa de um objecto. O peso, enquanto característica da matéria, é aquilo que faz a forma existir, e assim se estabelece uma relação de dependência entre matéria e forma na qual o peso é o ponto intermédio. E, se a gravidade é o princípio da construção, é pelo gesto que lhe acedemos. Em Gestes d’air et de pierre. Corps, parole, souffle, image (2005), diz-nos Georges Didi-Huberman que matéria e ar sabem perfeitamente encontrar-se, ativando uma espécie de espaçamento ou silêncio que evidencia a relação dialéctica entre a transparência (imaterialidade ou ausência) e a opacidade (materialidade ou presença). Resta-nos resgatar a leveza e o fôlego do gesto — o mesmo que permite este encontro improvável no fundo da imagem. Da intersecção entre pedra e luz (ar) resulta uma espécie de ponto cego na direcção do qual todas as imagens parecem imergir. Diante-dentro.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2023

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MARCELO MOSCHETA, série Geo_Lógica, 2022 + Insular

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Marcelo Moscheta, série Geo_Lógica, 2022 + Insular

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A pedra é uma imagem. A pedra é um arquivo. O circuito mais estreito entre o objecto e a memória conduz a um ponto de indiscernibilidade constituído pela coalescência das imagens, das temporalidades distintas. No entanto, a indiscernibilidade do presente e do passado, real e ficcional, é característica de algumas imagens existentes, as quais são duplas por natureza. Imagem cristal. Imagem especular que atravessa a linha do tempo para sair do outro lado. Reverberando a cada instante.

Aqui, pode fazer-se uma relação com o arquivo. Este, segundo Jacques Derrida, é mais do que uma coisa do passado; antes disso, deve equacionar o por vir. Tal ocorre igualmente com a noção de imagem cristal, na qual o presente, o passado e o futuro coexistem e se cristalizam — configurando um circuito que nos leva de um a outro. Em loop. Imagens que são uma e outra coisa. Tempos que são uns e outros. Tempos duplos. Imagens duplas. Pedras duplas.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2023

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Sobre o “Conceito Curatorial”, escreve a curadora, Ana Rito:

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Panta Rhei. Tudo flui. Tal qual o rio de Heráclito: «Nenhum homem se banha no mesmo rio duas vezes, pois não é o mesmo rio e ele não é o mesmo homem», assim é com as imagens paradoxais. As águas que banham a Lezíria parecem estáticas, mas correm, gerando um fluxo constante de imagens. Não olhamos duas vezes a mesma imagem, porque esta é sempre outra, na medida em que aquele que a olha é sempre outro; Não existem, portanto, imagens fixas. A técnica parece afirmá-lo, mas estas são percepcionadas sempre por um sujeito em movimento, em constante mutação. Ao devir, à impermanência que nos aponta o filósofo grego, acrescentamos o conceito de paralaxe: um aparente deslocamento do objecto observado, aqui imagem, que é causado por uma mudança no posicionamento do observador.

Ora, é precisamente no intervalo entre o fixo e o movente, a imagem e o corpo, o óptico e o háptico, que nos situamos: no território das imagens paradoxais que são duplas por natureza.

O programa curatorial apresenta um conjunto de obras de artistas nacionais e internacionais que permite criar zonas de contacto e de diálogo. Considerando as relações entre a fotografia e a literatura, a escultura, o desenho, o cinema ou a vídeo arte, as duas exposições são concebidas como constelações entre universos autorais: do campo expandido da fotografia ao objecto.

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Desde o conceito de “esquisso fotográfico” à foto-instalação, passando por manifestações de carácter híbrido, esta é uma proposta que coloca em cena o espaço agora ocupado, o texto-imagem ou a janela-ecrã que o emoldura. Na exposição DIANTE-DENTRO, é a imagem intersticial – resultado do efeito de paralaxe, do reposicionamento dos corpos e da sobreposição de campos perceptivos – que intui o devir, conceptualizando a denominada “imagem com relevo” e a relação entre ar (imagem) e pedra (objecto-escultura). Num primeiro núcleo da exposição, e a partir de colecções privadas, é apresentado um conjunto de cartões estereoscópicos, positivos em albumina e visores do séc. XIX, na constituição de uma antecâmara desenvolvida em parceria com a investigadora Ana David Mendes. A exposição inclui, a par deste intróito, projectos de artistas contemporâneos que reflectem as relações históricas entre o fotográfico e o escultórico na intersecção de imagens “esculpidas” e o dispositivo.

A fotografia atravessa o corpo e introduz-se entre o olhar e o mundo. Ao introduzir-se entre o olhar e o mundo subtrai imagens, acrescenta e produz novos objectos. Subtraídas ao mundo, aos corpos e aos objectos as imagens adicionam-se-lhe de novo, numa espécie de segunda pele, a que se seguem outras numa renovação permanente. Tudo fluí. Tal qual o rio de Heráclito. Em loop.

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A exposição “Diante-Dentro”, com obras de Daniel Moreira & Rita Castro Neves, Henrique Pavão, Manuela Marques, Marcelo Moscheta, Noé Sendas e Paulo Lisboa, integra a Bienal de Fotografia 2022, está patente no Museu Municipal de Vila Franca de Xira, de 12 de novembro de 2022 a 26 de fevereiro de 2023.

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Sobre esta edição da Bienal, escreve a organização:

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A “Bienal de Fotografia” de Vila Franca de Xira afirma-se em 2022, trinta e quatro anos volvidos desde a sua criação, em 1989, como o mais antigo evento de premiação exclusivamente dedicado à cultura fotográfica no nosso país, ostentando por isso um histórico assinalável ao nível da promoção da prática fotográfica portuguesa.

Apontada desde o início à revelação de novos talentos na área da fotografia artística, a Bienal apresenta uma matriz que partiu da estreita relação com as instituições de ensino artístico no âmbito fotográfico, para se projetar hoje, cada vez mais, na atenção à iniciativa individual dos artistas que fazem uso da fotografia numa perspetiva abrangente e transdisciplinar. Defensora do valor da descoberta e da avaliação da experiência visual que designamos como “fotografia”, a Bienal continua apostada em celebrar a liberdade e a ousadia do processo criativo, empenhando-se na consolidação de um programa cuja amplitude, dividida entre a premiação (Patriarcal) e a ação curatorial (Fábrica das Palavras e Museu Municipal), assegura à nossa cidade um estatuto de referência, no que à prática da fotografia contemporânea diz respeito.

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Ana Rito. Artista visual, curadora, investigadora e docente universitária. É Doutorada em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, na especialidade de Instalação. Desenvolve, desde 2002, projectos que cruzam a prática artística e curatorial, sendo o seu domínio de especialização a performatividade da imagem movente e as dinâmicas do espectador, no seio do dispositivo expositivo.

Foi Assistente de Curadoria do Dr. Jean-François Chougnet, Director do Museu Colecção Berardo de 2007 a 2011, tendo desenvolvido investigação curatorial, e assistido vários curadores e artistas. Dos seus projectos curatoriais destacam-se a exposição SHE IS A FEMME FATALE: artistas mulheres na Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Museu Colecção Berardo, One Woman Show, Organização do Ciclo de Filmes em colaboração com o Festival Temps d`Images (2009); SHE IS A FEMME FATALE#2, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Biblioteca do Campus de Caparica, Almada, em 2010 OBSERVADORES Revelações, Trânsitos e Distâncias, Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Museu Colecção Berardo (2011); CURATING THE DOMESTIC Images@home, Trienal de Arquitectura de Lisboa (2013); A IMAGEM INCORPORADA/THE EMBODIED VISION: Performance para a câmara, Museu Nacional de Arte Contemporânea Museu do Chiado (2014); Arquivo e Democracia, de José Maçãs de Carvalho, MAAT (2017), CONSTELAÇÕES: uma coreografia de gestos mínimos (2019-2022), UMA VIDA INTEIRA – Nuno Sousa Vieira, BAG – Leiria (2021), ENIGMA – Pierre Coulibeuf (2022). 

Desde 2002, no desenvolvimento dos seus projetos artísticos e curatoriais, colaborou com as seguintes instituições e agentes, entre outras: MACBA, Warburg Institute, Arquivos Yves Klein, Haus Lange-Haus Esters – Kunstmuseen Krefeld, Museu do Chiado, Museu de Serralves, Fundação Calouste Gulbenkian, Casa das Histórias, Centro Georges Pompidou, Trienal de Arquitetura, Arquivos Walter Benjamin, Festival Temps d’Images, Eletronic Arts Intermix, Festival Internacional de Vídeo FUSO, CAPC- Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, MUCEM, Marselha. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, membro de júris nacionais e internacionais, é também Curadora Associada da plataforma UmbigoLAB e da ArtCuratorGrid/ArtPool.

É atualmente Investigadora Integrada do CEIS20_Universidade de Coimbra, sendo co-coordenadora da linha de investigação Arte e Performance (Performatividade da Imagem). Lecciona nos Cursos de Mestrado em Estudos Curatoriais e de Doutoramento em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. É Sub-Directora do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. 

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Sobre a segunda parte desta exposição no FF, aqui.

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