JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO, CONTRATEMPO
Exposição na Carlos Carvalho Arte Contemporânea, em Lisboa, de 24 de setembro a 10 de dezembro de 2022.
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Foi já no final que visitei esta exposição, embora já encerrada, não quero deixar de trazê-la aqui, pela sua excelência e importância. Uma revisitação à obra recente de José Maçãs de Carvalho, apresenta uma série inédita (para já, com 6 imagens): Sem título (after gerhard r.), 2022 e o vídeo killed the painting stars (m. ray), vídeo, 6’30’’, de 2021. O texto de Ana Rito, curadora da exposição, faz uma leitura do exposto no contexto da obra e da pesquisa do autor, centrada no conceito do Arquivo.
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Lemos no site da Galeria:
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Esta é a primeira exposição individual de José Maçãs de Carvalho na Carlos Carvalho Arte Contemporânea.
No seguimento de exposições como Arquivo e Nostalgia (2012), Arquivo e Domicílio (2014), Arquivo e Melancolia (2016), Arquivo e Vestígio (2016) ou Arquivo e Democracia (2017), CONTRATEMPO, numa lógica dialéctica, entre a continuidade e a interrupção, propõe relacionar imagens, palavras, corpos e lugares, narrativas que contêm outras narrativas dentro de si, necessariamente transtemporais. Esta exposição atravessa o arquivo para se colocar “diante da imagem” (numa referência a Georges Didi-Huberman) para a pensar enquanto superfície de contacto, enquanto véu ou neblina que exercita a (in)visibilidade e a iminência do seu (des)aparecimento. Para o artista, estar diante de uma imagem é estar diante do(s) tempo(s); é atravessá-la para ir de uma ponta a outra, não sabendo o que está para lá do olhar. De rasto em rasto, de vestígio em vestígio, os arquivos de José Maçãs de Carvalho inscrevem-se nas superfícies (ecrãs) como sintoma, fixando-se ora nas fotografias, ora no dispositivo da vídeo-instalação.
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José Maçãs de Carvalho, série Sem título (after gerhard r.) [6 fotografias] – killed the painting stars (m. ray), vídeo, 6’30’’, 2021 – Beirut_6, 2007 – 9_11, 2007 – Warburg Hotel, 2022 – Sp hotel, 2022 – Série Arquivo e Dispositivo, Sem título (Bouguereau), 2016 – Série Arquivo e Vestígio, Sem título (6), 2022 – Série Arquivo e Vestígio, Sem título (28), 2016 – Série Arquivo e Vestígio, Sem título (Ciência), 2016 – Série Arquivo e Vestígio, Sem título (Borboletas), 2016
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Ana Rito, curadora da exposição, escreve:
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Imagens que entram umas pelas outras
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A contínua transitoriedade dos corpos e das imagens, assim como das palavras e dos gestos, potencia o arquivo enquanto medium em si (performatizando-o), relacionando a fotografia e o vídeo, o fixo e o movente.
CONTRATEMPO permeia o arquivo para se colocar “diante da imagem” para a pensar enquanto superfície de contacto, enquanto véu ou neblina que exercita a (in)visibilidade; estar diante de uma imagem é estar diante do(s) tempo(s); é atravessá-la para ir de uma ponta a outra; não sabendo o que está para lá do olhar. Numa lógica dialética, entre a continuidade e a interrupção, propõe-se um travelling, por entre as duas salas de exposição, relacionando imagens, palavras, corpos e lugares, numa narrativa necessariamente transtemporal. De rasto em rasto, de vestígio em vestígio, os arquivos de José Maçãs de Carvalho inscrevem-se nas superfícies (ecrãs) como sintoma, fixando-se ora nas fotografias, ora no dispositivo da vídeo-instalação.
A impermanência dos lugares, e a sua indefinição, traduzem-se nas imagens captadas em reservas de museus, por exemplo, espaços que antecedem o ato expositivo, antecâmaras da visibilidade. Estes intervalos estabelecem o fenómeno arquivial numa espécie de “campo expandido”, indiciando a iminência do seu (des)aparecimento.
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Parergon: neither work (ergon) nor outside the work [hors d’oeuvre], neither inside nor outside, neither above nor below, it disconcerts any opposition but does not remain indeterminate and it gives rise [donne lieu] to the work. It is no longer merely around the work.
Jacques Derrida
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No capítulo inicial de La Vérité en peinture (1978), Jacques Derrida expõe uma leitura da Crítica da Faculdade do Juízo (1790), de Immanuel Kant, na qual sugere que cada obra de arte transporta consigo uma estrutura de suplementação que não se localiza nem dentro nem fora dela. Esta análise procura demonstrar o carácter discricionário da distinção que Kant institui entre o dentro e o fora de uma obra, definindo o estatuto do parergon como algo que possibilita o suprimento, uma «resolução interna» da entidade a que se adita. No caso de uma pintura, veja-se o exemplo, é a moldura que delimita a obra do meio circunjacente e lhe confirma a inteireza de sentido que permite a sua «pessoalidade». A pertença quer ao exterior da imagem quer à própria imagem constitui então o parergon, precisamente como um espaço entre o dentro e o fora — sendo simultaneamente um e outro.
Na série Sem título (after gerhard r.) José Maçãs de Carvalho apresenta-nos imagens dúplices, imagens dentro de imagens, frames dentro de frames, dobrando, porque duplicando, o parergon. As mãos que seguram cada uma das fotografias que compõem 48 Portraits de Gerhard Richter (que fotografa as pinturas de 1972 realizadas para a representação alemã na Bienal de Veneza) – o fora de campo dessas imagens – estabelecem a moldura como elemento intersticial, pois esta está agora no campo da imagem subtilmente construída por Maçãs de Carvalho. O mise-en-abyme que daí resulta atravessa todas as suas imagens como sintoma, como contratempo. Em Video killed the painting stars (m. ray) de 2021, a “mesma mão” entra em campo. O plano fixo é um dos elementos que define a peça em termos temporais, conduzindo a uma leitura do tempo e do espaço: o espaço de representação é aquele e é ali que o que quer que seja que se passe decorrerá. Esta mão surge no enquadramento da imagem: La Vénus del Espejo de Velázquez (1647-1651) e desenha algo que não é imediatamente reconhecível, uma espécie de inscrição. Uma outra duplicação. Le Violon d’Ingres. Em 1924 Man Ray, tendo como referência a obra pictórica de Ingres, fotografa Kiki de Montparnasse, numa pose próxima aos nus deste. Nesta fotografia desenha os orifícios f existentes no topo dos violinos (também estes um espaço entre o dentro e o fora — lugar de respiração). Volta a fotografar. José Maçãs de Carvalho repete-lhe o gesto. Video killed the painting stars (m. ray) é uma sucessão de duplicações, dobras, todas condensadas num elemento: o reflexo no espelho de Vénus. O olhar de volta. O olhar que volta. A imagem que olha de volta (veja-se também Sem titulo (bouguereau). Em volta. Mise-en-abyme.
Ora, na música, precisamente, contratempo é um deslocamento do acento métrico natural do compasso onde o acento que seria no tempo forte acontece no tempo fraco através de um sinal de dinâmica como o sforzato. Por tempo fraco podemos, no contexto do nosso ensaio, entender os intervalos, os espaços entre que vão de uma nota a outra, sendo ao mesmo tempo uma e outra, e neles aplicar a tónica. Parergon. Contratempo.
“Quanto ao paradoxo temporal, teremos reconhecido nele o anacronismo: um sintoma nunca surge no momento oportuno, aparece sempre em contratempo, como um antigo mal-estar que volta para importunar o nosso presente. E também aqui, segundo uma lei subterrânea que compõe durações múltiplas, tempos heterogéneos e memórias entrelaçadas. O que o sintoma-tempo interrompe não é mais do que o curso da história cronológica.”
Diz-nos Georges Didi-Huberman em Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismos das Imagens que, diante de uma imagem, estamos sempre diante do(s) tempo(s). Ora, diante da imagem, o presente nunca cessa de se reconfigurar, na medida em que a imagem apenas se torna pensável num processo de construção da memória. Lembramos lembrando.
Assim, olhar uma imagem é ativar a potência do instante; o tempo real (ou tempo vivido) é conjuntamente o passado, o presente e o futuro: ou seja, a transtemporalidade (tempos múltiplos, individuais e coletivos) e o instante em simultâneo.
Catherine Malabou, em L’avenir de Hegel: Plasticité, temporalité, dialectique (1996) entende a plasticidade como dupla face da elasticidade (das coisas, do tempo, dos sujeitos), da suscetibilidade e de uma profunda contingência, relacionada com a capacidade de absorção do choque exterior por parte da matéria e dos corpos, a sua possibilidade de receber e dar forma. Esta plasticidade infinitamente moldável das formas e dos tempos aceita o imprevisto e o desvio, no surgir de figuras inesperadas ou de qualquer elemento perturbador na imagem. Molinet aproxima plasticidade ao conceito de imagemsintoma proposto por Didi-Huberman. Estendemos essa aproximação, por esta via, a contratempo.
Desvio. Imprevisto. Intermitência. Paradoxo. Ambiguidade. Neblina. Desfoque. Véu. Intervalo. Parergon.
No seu livro O Destino das Imagens (2003), especificamente no subcapítulo «A frase-imagem e a grande parataxe», Jacques Rancière apresenta uma trajetória contemporânea da imagem enquanto lugar primeiro de heterogeneidade, dissociação e montagem, analisando a sua relação com a palavra, o texto e a frase. Trazendo o conceito de edição cinematográfica (via Jean-Luc Godard) para esta análise, o filósofo introduz o conceito de fraseimagem, refletindo sobre o cruzamento entre aquilo que é dizível e aquilo que é visível. Comummente, a imagem, ao ser vista, produz uma espécie de «efeito de choque»; e a frase, ao ser lida, é o elemento apaziguador, estabelecendo um contínuo.
Falamos de Beirut_6, 9_11 e Warburg Hotel. A fraseimagem, segundo Rancière, enformada por Godard, pretende ser a combinação de duas funções que devem definir-se esteticamente: no esquema representativo, o texto será a ligação conceptual das ações, enquanto a imagem será o suplemento da presença que lhe confira carne e substância. A fraseimagem derruba esta lógica. Ora, nem a frase é aquilo que se diz, nem a imagem é aquilo que se vê.
A função da frase ainda é a de vincular (por dissociação, dissemelhança); no entanto, agora, a frase tanto liga quanto dá carne.
A frase é aquilo que também se vê, portanto. Em contratempo.
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António Bracons, Aspetos da exposição, 2022
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A exposição “Contratempo”, de José Maçãs de Carvalho, com curadoria de Ana Rito, esteve patente na Carlos Carvalho Arte Contemporânea, na R. Joly Braga Santos, Lote F – R/C, em Lisboa, de 24 de setembro a 10 de dezembro de 2022.
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António Bracons, José Maçãs de Carvalho, 2022
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José Maçãs de Carvalho (Portugal), artista, curador e professor universitário.
Doutoramento em Arte Contemporânea – Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, em 2014; estudou Literatura nos anos 80 na Universidade de Coimbra e Gestão de Artes nos anos 90, em Macau onde trabalhou e viveu; Professor no Dep. de Arquitetura e no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, onde é Coordenador do Mestrado em Estudos Curatoriais. É curador do Centro de Arte Contemporânea de Coimbra desde 2020. Foi bolseiro da F.Calouste Gulbenkian, F.Oriente, Instituto Camões, Centro Português de Fotografia e Instituto das Artes/Dgartes, Em 2003 comissaria e projecta as exposições temporárias e permanente do Museu do Vinho da Bairrada, Anadia; em 2005 comissaria “My Own Private Pictures”, na Plataforma Revólver, no âmbito da LisboaPhoto. Nomeado para o prémio BESPhoto 2005 (2006, CCB, Lisboa) e para a “short-list” do prémio de fotografia Pictet Prix, na Suiça, em 2008. Entre 2011 e 2017 realizou várias exposições individuais em torno do tema da sua tese de doutoramento (arquivo e memória): no CAV, Coimbra; Ateliers Concorde, Lisboa e Colégio das Artes, Coimbra; Galeria VPF, Lisboa; Arquivo Municipal de Fotografia, Lisboa, Bienal de Fotografia de VF de Xira, Museu do Chiado e MAAT, Lisboa. Publicou o livro “Unpacking: a desire for the archive” pela Stolen Books, em 2014. Em 2015 foi publicado um livro de fotografias suas, “Partir por todos os dias”, na Editora Amieira. Já em 2016 participa no livro “Asprela”, fotografia sobre o campus universitário do Porto, editado pela Scopio Editions e Esmae/IPP. Em 2017 publica o livro “Arquivo e Intervalo”, edição Stolen Books/Colégio das Artes-Universidade de Coimbra e MAAT, com colaborações de Pedro Pousada, José Bragança de Miranda, Adelaide Ginga e Ana Rito. Representado em diversas coleções públicas e privadas.
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Ana Rito (Portugal) artista visual, curadora, investigadora e professora universitária.
É Doutorada em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, na especialidade de Instalação. Desenvolve, desde 2002, projectos que cruzam a prática artística e curatorial, sendo o seu domínio de especialização a performatividade da imagem movente e as dinâmicas do espectador, no seio do dispositivo expositivo. Foi Assistente de Curadoria do Dr. Jean-François Chougnet, Director do Museu Colecção Berardo de 2007 a 2011, tendo desenvolvido investigação curatorial, e assistido vários curadores e artistas. Dos seus projectos curatoriais destacam-se a exposição SHE IS A FEMME FATALE: artistas mulheres na Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Museu Colecção Berardo, One Woman Show, Organização do Ciclo de Filmes em colaboração com o Festival Temps d`Images (2009); SHE IS A FEMME FATALE#2, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Biblioteca do Campus de Caparica, Almada (2010) OBSERVADORES Revelações, Trânsitos e Distâncias, Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Museu Colecção Berardo (2011); CURATING THE DOMESTIC Images@home, Trienal de Arquitectura de Lisboa (2013); A IMAGEM INCORPORADA/THE EMBODIED VISION: Performance para a câmara, Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (2014); Pequenos monumentos que atestam o início das possibilidades, Museu Nacional de História Natural e da Ciência – Sala do Veado (2015); O outro quando (não) estamos a olhar, FCT- NOVA – Biblioteca do Campus de Caparica (2016); Arquivo e Democracia, de José Maçãs de Carvalho, MAAT (2017), CONSTELAÇÕES: uma coreografia de gestos mínimos (2019-2022), UMA VIDA INTEIRA – Nuno Sousa Vieira, BAG – Leiria (2021), ENIGMA – Pierre Coulibeuf, Galeria FOCO – Temporada cruzada França/Portugal (2022). Desde 2002, no desenvolvimento dos seus projetos artísticos e curatoriais, colaborou com as seguintes instituições e agentes, entre outras: MACBA, Warburg Institute, Arquivos Yves Klein, Haus Lange-Haus Esters – Kunstmuseen Krefeld, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu de Serralves, Fundação Calouste Gulbenkian, Casa das Histórias, Centro Georges Pompidou, Trienal de Arquitetura, Arquivos Walter Benjamin, Festival Temps d´Images, Eletronic Arts Intermix, Festival Internacional de Vídeo FUSO, CAPC – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Bienal Anozero, MUCEM, Marselha. Autora de livros e de ensaios para catálogos de exposição, membro de júris nacionais e internacionais. É atualmente Investigadora Integrada do CEIS20_Universidade de Coimbra, sendo co-coordenadora da linha de investigação Arte e Performance. Lecciona nos Cursos de Mestrado em Estudos Curatoriais e de Doutoramento em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. É Sub-Directora do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Curadora da 17ª edição da Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira.
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Pode conhecer mais sobre a obra de José Maçãs de Carvalho no FF, aqui.
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Cortesia: José Maçãs de Carvalho e Galeria Carlos Carvalho Arte Contemporânea
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