LUÍSA FERREIRA, LORETO

Exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, de 1 de fevereiro a 5 de março de 2022.

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A Rua do Loreto, no coração de Lisboa, mesmo junto ao Camões.

Aí residiu Luísa Ferreira desde jovem até há escassos anos. Um dia, uma carta do senhorio, para todos os arrendatários do edifício, também para a sua família. Despejo. A decisão era irreversível e não houve outra solução se não deixar a casa de uma vida, o lar. As diferentes famílias foram para diferentes sítios: uns mais perto, outros mais afastados, para as terras de origem, na província.

Luísa Ferreira fotografou a sua casa, a vivência, o embalar as coisas, a casa que fica vazia, a despedida, a partida: a camioneta das mudanças carregada.

Mostra-nos as fotografias, algumas em molduras, diversas, dispersas, usadas, antigas, com história. E diversos pertences que fizeram (fazem) parte da história da família. E algumas das fotografias que ali imprimiu e revelou. E o som que gravou no dia da entrega das chaves, do movimento da rua, desde manhã cedo até ao meio dia, que o dia ali começa cedo…

Loreto.

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Escreve Luísa Ferreira:

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Em 1984, um jovem amigo de Paris estava muito triste porque as famílias estavam a ser empurradas para longe do centro e a mãe dele deixar de poder pagar a nova renda… Nessa altura Lisboa era ainda uma cidade onde se podia viver.

Na última década, mas especialmente nos últimos anos, pessoas têm sido despejadas de suas casas. Empurradas para fora do seu ciclo de vida construído desde sempre, simplesmente perderam o direito à cidade.

Instalaram-se agora em lugares de província onde já não conhecem ninguém, onde os seus amigos e familiares não vivem.

O vazio de Lisboa que a pandemia e o confinamento nos revelaram.

Capital sem rosto, fundos de investimento… gentrificação.

Perda. Memória. Permanência. Rotura.

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Lisboa, 30 de setembro de 2020

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Luísa Ferreira, Loreto, 2020

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João Silvério escreveu o texto que integra o livreto editado para esta exposição (A5, 12 pp., duas edições, em português e em inglês):

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LORETO. CIDADE. LORETO DO MUNDO.

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A exposição “Loreto” propõe-nos uma miríade de olhares que circulam por dentro e por fora da cidade de Lisboa onde esta rua se situa. Estes olhares são como vestígios de pessoas que ali chegaram, viveram e num dado momento partiram sem destino e sem caminho.

São como uma memória que se presentifica, parecendo materializar-se numa espessura profunda que a luminosidade de cada fotografia vai revelando e ao mesmo tempo subtraindo ao nosso olhar, e assim à construção transitória do nosso imaginário. Mas Luísa Ferreira não se detém apenas no registo fotográfico e percorre um itinerário visual e plástico que transforma a exposição numa obra única, por um lado fragmentada no espaço do observador, mas por outro coesa e densa como um corpo que se vai revelando.

Assim, esta obra é uma instalação intitulada por uma só palavra, “Loreto”, que unifica todos os meios, objectos e significações que a constituem, sejam estes fotografias, emolduradas de forma diversa, o som da vida urbana que se transforma em cada noite e que nos devolve uma ambiência do espaço público, e os objectos de uso doméstico, alguns utilitários e outros decorativos, que nos revelam uma intimidade que noutro tempo pertenceu ao espaço da vida privada.

No trabalho da artista, a cidade e os seus habitantes, os seus hábitos e costumes, o universo do trabalho, a arquitectura, a casa ou a paisagem são temas recorrentes de investigação e de questionamento. Estes temas constituem a sua obra em diversas séries sob uma forte consciência social e política que nos leva a reflectir sobre modelos económicos e de organização da cidade enquanto modelo civilizacional colectivo.

Contudo, “Loreto” apresenta-se perante nós a partir de um plano auto-referencial, da vida familiar, dos laços afectivos que se geram na experiência do lugar, da partilha da vizinhança e do tempo enquanto estratificação da memória da vivência e, deste modo, da construção da identidade, mas também da sua perda. Neste aspecto, a artista desenvolve em cada uma das fotografias micro-narrativas de que não conhecemos nenhum desfecho, sendo por isso um trabalho que cruza a ficção com o documentário, sem esquecer uma poesia que não estetiza nem diminui o impacto dos espaços vazios, por vezes desnudados da presença humana, disponíveis, porque foram sujeitos à transmutação da cidade em lugar de passagem e não de residência.

Duas fotografias são exemplares deste contexto paradoxal, e remetem-nos para um tempo não cronometrado e entrecortado. A primeira que refiro é um canto de uma sala vazia, onde um cabo suspenso e da vida doméstica, assente numa parafernália de aparelhos que nos emprestam a comodidade, mas também o afã da urgência dos dias. A segunda fotografia situa-nos na parede oposta à primeira: o painel de azulejos mostra-nos o seu esplendor iluminado pela luz que desenha a cidade, e as paredes revelam-se então como guardadoras de memórias na geometria abandonada dos quadros e dos objectos que marcaram vivências e cumplicidades. “Loreto” é, deste modo, um itinerário de memórias diversas num contexto de proximidade, onde todos os micro-acontecimentos registados são o resultado de um processo cumulativo de transições irregulares.

E, tal como a artista escreveu num texto biográfico, que acompanha esta publicação e tem a sua primeira referência à cidade de Paris no testemunho de um amigo que nos situa entre a década de 1980 e os dias infindáveis do confinamento, da gentrificação e do capital sem rosto, aproximando-nos assim de um Loreto do mundo, globalizado, porventura cosmopolita, mas irreversivelmente desterritorializado.

Uma das últimas fotografias transporta-nos para uma composição equilibrada, cujo punctum é uma luminosa florescência de cor verde no interior de uma escada que se desenvolve em diferentes planos dos pisos de um prédio.

Só um olhar atento poderá apreender a totalidade dos acontecimentos que ali ocorrem: os sacos atirados à porta, as revistas amontoadas sobre um pequeno móvel, entre a chegada ou a partida, entre a desolação e a planta verde que deambula na luz interior daquele prédio e onde descobrimos um corpo que parece deter-se na sua marcha sem destino. “Loreto” põe-nos perante um paradoxo, entre as memórias vividas e esses olhares múltiplos e anónimos de uma cidade que se transmuta e se reconfigura num outro tempo. E é sobre o tempo que vivemos, e como o vivemos, que este projecto se revela.

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António Bracons, Aspetos da exposição, 2022

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“Loreto”, de Luísa Ferreira, está em exposição na Sala Fernando Azevedo da Sociedade Nacional de Belas Artes, na Rua Barata Salgueiro, 36, em Lisboa, de 1 de fevereiro a 5 de março de 2022.

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António Bracons, Luísa Ferreira, Loreto [3 gerações], Lisboa, 2022

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Luísa Ferreira nasceu em Lisboa em 1961.
Iniciou-se em Geografia, trocou o curso pela fotografia. Começou a fotografar profissionalmente em meados dos anos 1980. Em 1989 integrou a equipa de fotojornalistas fundadores do jornal Público.

Interrompeu a actividade diária de fotojornalista em 1998, após trabalhar sete anos no jornal diário Público e dois anos na agência de notícias norte americana Associated Press. Continua a colaborar com a imprensa.

Expõe individualmente com regularidade desde 1989, desenvolvendo projectos pessoais e trabalhos de encomenda.

Fotógrafa independente, vive e trabalha em Lisboa.
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Integrou a exposição Au Féminin. Women Photographing Women 1849-2009, curadoria de Jorge Calado, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Paris, 2009.

Expôs nos Encontros de Imagem de Braga nos anos 1994, 1995 e 1996 e nos Encontros de Fotografia de Coimbra em 1994.

Foi Primeira Escolha nos Recorridos Fotográficos da ARCO98 (Madrid) com Éter.

Em 1994 iniciou Há quanto tempo trabalha aqui?, fotografias de médio formato sobre as lojas antigas de Lisboa e as pessoas que as habitam, exposto no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa em 2005; em 2010 integrou a exposição Res Publica 1910 e 2010 face a face, na Fundação Calouste Gulbenkian com uma selecção de lojas com aproximadamente 100 anos.

Realizou projectos com características diversas, como “fora de jogo”, 40.000 postais de campos de futebol sem relva, bancadas ou iluminação, enviados durante o Euro2004, no âmbito do Arte em Campo do Instituto das Artes.

Expôs “Capitão Goma”, fotografias dentro de almofadas insufláveis   sobre o mundo das crianças, na Casa d’Os Dias da Água em 2003.

Inaugurou o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz com As crianças são o nosso espelho e Luz para as Abadias em 2002.

Em 1993 expôs 110 polaroids, ampliados para 70x70cm, dentro de 33 contentores no Armazém AB do Porto de Lisboa, ao Jardim do Tabaco, com “Os objectos já não têm cores/mas as sombras dos objectos têm as cores deles/um amigo meu/que tem a chave das docas/também pensa assim ” (Picabaia).

Fez um levantamento fotográfico sobre a Ciência em Portugal para a constituição de um banco de imagem para o Observatório das Ciências e Tecnologias/Ministério da Ciência e Tecnologia entre 1999 e 2002. Fotografou escritores Portugueses para a representação de Portugal nas feiras do livro de Frankfurt (1997) e de Paris (2000).

Participou em várias exposições individuais e colectivas em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Escócia, Bélgica e Alemanha.

Publicou, entre outros, o livro “Azul” (2002) sobre os não-lugares, com texto de Agustina Bessa-Luís.
Está representada em diversas colecções nacionais e estrangeiras.

É professora convidada no IADE Escola Superior de Design (desde 1996) e na ETIC Escola Técnica de Imagem e Comunicação (desde 1998).

Encontra-se a desenvolver Doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Socias e Humanas, do curso de Geografia e Planeamento Territorial, especialidade Geografia Humana.

É licenciada em Fotografia e Cultura Visual (Escola Superior de Design, IADE, 2009), Mestre em Design e Cultura Visual área de especialização Estudos de Fotografia pela Escola Superior de Design, IADE, 2011.
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Pode conhecer melhor a obra de Luísa Ferreira no FF aqui e no site da autora, aqui.

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Cortesia da Autora.

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