ANDRÉ GOMES E PEDRO CALAPEZ, SEJA DIA OU SEJA NOITE POUCO IMPORTA
Exposição no Museu Coleção Berardo, em Lisboa, de 16.06.2021 a 02.01.2022.
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Nesta exposição, a fotografia de André Gomes dialoga com a pintura de Pedro Calapez (série “Um corpo entre outros”). As molduras negras de André Gomes e as molduras brancas de Pedro Calapez. O horizontal de André Gomes e o vertical de Pedro Calapez.
As obras de André Gomes desenvolvem-se, como tem sido o seu trabalho dos últimos anos, sobretudo em dípticos e trípticos em que as imagens se fundem entre si ou que se apresentam contíguas, mas sempre como uma única imagem.
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Na folha de sala lemos um excerto do texto «Crepúsculo das Imagens», de Alexandre Melo, presente no catálogo da exposição:
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O trabalho de André Gomes é construído a propósito de imagens, e, para evitar a incontrolável polissemia da palavra, convém especificar que utilizaremos aqui a palavra «imagem» numa dupla aceção.
Numa aceção literal que diz respeito à noção de «imagética», diríamos que a obra forma um conjunto articulado de imagens — uma imagética — que, por sua vez, tem já como matéria-prima um imenso conjunto de imagens previamente apropriadas, captadas, registadas ou produzidas pelo artista: ou seja, imagens-fotografias.
Numa aceção talvez metafórica (digo talvez porque não sei ao certo qual seja o estatuto físico ou ontológico de uma «imagem») que diz respeito à noção de «imaginário», refiro imagens enquanto entidades imaginadas que habitam o «imaginário» do artista talvez já antes e por certo ainda depois de cada uma das imagens-obras acabadas que ele nos dá a ver.
As imagens visíveis (não sei se as imagens imaginadas podem ser realmente visíveis) que o artista connosco partilhou são o resultado de uma sofisticada negociação entre as imagens concretas — fotografias — que foi utilizando e as imagens abstratas do seu imaginário pessoal que, essas, o foram usando a ele.
A negociação comportou a utilização de múltiplas modalidades e técnicas.
As modalidades terão sido, entre outras, a visitação de livros de história de arte, a biografia mundana, a encenação teatral, a absorção sociopolítica, a deambulação fantasiosa ou a peregrinação metafísica.
A sua contribuição para Alternativa Zero chamava-se The Pilgrimagemania: «peregrinação», «imagem».
As técnicas foram, entre outras, justaposição/contraposição, recorte/colagem, sobreposição/fusão/encadeamento, potenciadas, em trabalhos mais recentes, pelas técnicas digitais. É significativo que o artista tenha sido em Portugal um dos primeiros a utilizar a polaroid, um tipo de «imagem» cujas caraterísticas peculiares — captação instantânea, calor e brilho da cor — são relevantes para a compreensão do seu método de trabalho.
As técnicas digitais, nas palavras do autor, «permitem ir mais fundo dentro de mim, exteriorizar reminiscências que permitem uma especulação meditativa». «Como é que eu verdadeiramente olho? No pequeno palco da fotografia, cada imagem é um enigma a esclarecer juntando outros enigmas.»
Calapez propõe o contraponto. As pinturas são «o que está fora da imagem», o que está nas pinturas «depende da delimitação do que lá não está», são «a margem da moldura, o que sobra das fotografias».
[…]
No início da década de 1980, nas nossas primeiras conversas, Calapez explicou que, perante as pinturas dos mestres italianos do Renascimento que então lhe serviam de referência (Fra Angelico, Giotto), a sua aproximação e o seu método de trabalho consistiam em retirar às composições as suas componentes narrativas, designadamente as figuras humanas, para se centrar nas linhas fundamentais de estruturação do espaço (arquiteturas, cenografias). A ausência de corpos e figuração narrativa (mesmo quando representou objetos, estes aparecem isolados e sem articulação funcional) completava-se, enquanto marca distintiva do trabalho do
autor, por um modo muito pessoal de riscar e pintar (sobretudo com grafite e pastel de óleo), gerando superfícies texturadas e sensuais de intensa vibração cromática sulcadas por linhas perseguindo um desenho.
As pinturas (abstratas e informais, diríamos, simplificando) que constituem o essencial do trabalho de Calapez no século XXI resultariam de uma radicalização do método de elisão da dimensão narrativa praticado desde o início da sua carreira, e que agora o liberta também da necessidade de explicitar qualquer enquadramento espacial ou referência objetual exteriores à materialidade da própria pintura.
Em séries como Muros (1996), Lugares (2005), Les Nourritures Terrestres (2019), Olhares Indiscretos (2019) ou Ensaios Fictícios (2020), observamos um jogo entre as diferentes espessuras das massas pictóricas trabalhadas pelos gestos e instrumentos de aplicação das tintas. Assistimos ao triunfo do livre exercício da cor e da luz através de uma modelação da tinta pela espátula e de uma requintada combinação de jogos de texturas.
No caso de Um corpo entre outros, estaríamos perante uma passagem do sólido ao líquido, das texturas às transparências; um jogo de sobreposições em que a pintura, em vez de «pintada», parece resultar de uma sucessão de voluptuosos mergulhos e absorções cujas inscrições o artista permitiu que se depositassem sobre o papel. Há uma sensação de tranquilidade, uma compassiva celebração sensual: a pintura, mais do que ter sido feita, parece ter emergido e repousar.
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António Bracons, Aspetos da exposição, 2021
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Naquele texto, Alexandre Melo refere ainda:
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Eu conheci-os durante a primeira metade da década de 1980, e desde então não nos perdemos de vista, nem perdi de vista os seus trabalhos, a propósito dos quais fui escrevendo. Entretanto, como não se trata de redigir uma memória biográfica, adianto que o meu ponto de partida será a hipótese de os trabalhos dos dois artistas serem um raro exemplo de perfeita complementaridade. André Gomes fala de «um dueto para violoncelo e piano», mas também de paralelos divergentes, sugerindo um modo de colaboração que estaria nos antípodas do cadavre-exquis. Vejamos.
É razoável supor que André Gomes sempre trabalhou e só trabalhou com imagens, apesar de sabermos que as referências para essas imagens provêm de muitas outras artes — teatro, cinema, música, literatura — além das chamadas artes visuais. As obras são o resultado laboriosamente construído de um trabalho de composição de imagens preexistentes. Entendemos aqui «imagens» nas suas aceções mais diretamente relacionadas com as noções de «imagética» e «imaginário».
É difícil supor que Calapez possa imaginar de modo exaustivo as suas pinturas — no caso destas pinturas em particular seria ainda mais difícil — antes de as pintar, mesmo que nos pareça aceitável que exista uma intencionalidade específica que se manifesta no decurso do processo do fazer e necessariamente — em cada obra em concreto — na decisão relativa à sua conclusão.Não existe nenhuma imagem que preceda e antecipe aquilo que será o resultado final do processo de pintar, a imagem final — aquela que nós vemos — da obra acabada. A imagem só aparece no fim, e é pouco provável que se lhe deva chamar imagem, porque não é pacífico usar uma expressão como «a imagem de uma pintura». São pinturas. Serão imagens?
André Gomes sempre se aproximou das imagens, não sabemos se para alimentar a ilusão de que se poderia afastar delas. Calapez sempre se afastou das imagens, não sabemos se para alimentar a ilusão de que se poderia aproximar delas.
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António Bracons, Aspetos da exposição (vídeo), 2021 – Objects in mirror are closer than they appear; realização: André Gomes; montagem e edição: José Lourenço; vídeo em loop, 3’41”; 2021 – Entremãos; realização: Pedro Calapez; montagem e edição: Juliana Jullieta; vídeo em loop, 4’12”; 2021; sonoplastia Manuel Calapez.
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A exposição de André Gomes e Pedro Calapez, “Seja dia ou seja noite pouco importa”, está patente no Museu Berardo, na Praça do Império, em Lisboa, de 16 de junho de 2021 a 02 de janeiro de 2022.
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Sobre a obra de André Gomes no FF, aqui.
Mais informação aqui.
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