JÓNATAS RODRIGUES, TRATADO SOBRE O APARECIMENTO, 2021

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Jónatas Rodrigues

Tratado sobre o Aparecimento

Fotografia e texto: Jónatas Rodrigues / Desenho gráfico: Catarina Aguiar

Lisboa: Visor / 2021

Português / c. 16,5 x 23,0 cm / 224 pp

Brochura, espinha aparente interior / 50 ex. numerados e assinados pelo autor

ISBN: 9789899838161

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(…) quando assim se viaja, as coisas apenas se mostram para logo desaparecerem. (…) essas coisas não têm importância, tal e qual como a paisagem, que também não tem qualquer importância: o que resta, apenas, é o aparecimento e o desaparecimento.

Witold Gombrowicz, Cosmos, Vega, p. 85

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Quando vi este livro inserido na exposição dos Bolseiros e Finalistas do Ar.Co, no âmbito do projeto apresentado pelo seu autor – para além de algumas fotografias expostas – fiquei verdadeiramente surpreendido.

Pousado no peitoril da janela, com um par de luvas de algodão para poder ser folheado – ótima decisão!, pois ficar o livro pela capa – “não se pode abrir”, como já me foi dito, nomeadamente numa Bienal – é muito pouco, e não ter luvas leva à fácil degradação do livro.

Uma verdadeira surpresa! A capa negra, um pequeno círculo impresso a negro, brilhante, aparece quando a luz o permite distinguir. As fotografias abordam o tema do Aparecimento – e desaparecimento – do que a fotografia desvenda – ou venda –, do que olhamos, vemos, encontramos. Aparecimento… As imagens foram realizadas, na sua maior parte, em filme negativo: o aparecimento manifesta-se na revelação: a imagem ‘está lá’, latente, mas só aparece quando revelada. “Aparecimento” é, para além de tudo o mais, um verdadeiro ensaio sobre a fotografia: “aliás, o que se pretende é fotografar.” – escreve o autor a encerrar a obra.

Uma pesquisa e desenvolvimento profundo, com excelente sequência, desenho gráfico e impressão (Gráfica 99).

Complementa a obra um interessante ensaio do autor, do qual transcrevo uma parte, uma referência às leituras efetuadas e uma tabela que identifica para cada fotografia: página, capítulo, título, câmara, objectiva, flash, película, suporte e dimensões, assumindo mais que ‘dados técnicos’, a exigência de um trabalho (essencialmente) analógico, metódico e exaustivo.

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Escreve Jónatas Rodrigues no seu ensaio:

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Entre a luz e a imagem está o Aparecimento. Dura um instante, uma eternidade ou qualquer coisa a meio. Pode ser um trajecto indeciso ou um percurso tranquilo e determinado. O normal é o Aparecimento não aparecer, entrevê-lo já será perturbador.

É nas regiões opostas do repentismo ou do prolongamento que ele nos atinge. No repentismo, pela interposição do alóctone na realidade local; no prolongamento, pela travessia de um território desconhecido, onde a luz permanece indómita. Num, desafia-se a compreensão, noutro, os olhos.

Palavras como “trevas” (branca ou negra), “caos” ou “monotonia” são medidas do que está por alcançar e nomes que se chamam aos retardadores da leitura. Embora usados sobre o objecto, reflectem a condição do sujeito.

A monotonia é adversa à interpretação por lhe sufocar o movimento. Às vezes é a leitura viciada que resulta nessa experiência de plenitude do vazio. Semidormente, o observador vai repetindo: “já vi isto”, como se fosse um maquinismo de reciclagem produtor do banal. O mecanismo da interpretação compraz-se na rapidez: forja-a, suprimindo etapas rumo a uma qualquer verdade útil, sem temor da estupidez que arrisca. Ainda que o exterior não tenha parentesco nenhum com o sujeito e exista indiferente aos seus crivos e calibrações, o que o sistema perceptivo quer é perceber, impondo-se fazê-lo sob um impulso, em boa parte, involuntário. Não o conseguindo, lança a frustração sobre o objecto refractário ao jugo do discurso. O detalhe diferenciador (frequentemente crucial) é desprezado sob a hegemonia do similar: oblitera-se informação e abrevia-se a interpretação, num resultado autofágico. O processo estatístico é mais rápido do que a vontade.

(…)

A estrutura bidimensional da imagem fotográfica aliada à sua natureza fragmentária, aplicada arbitrariamente no campo visível, pode criar proximidades geométricas entre objectos cujas relações de reciprocidade nem sempre são evidentes ou plausíveis. Padrões de interferência, intermitências, texturas alteradas com ou sem correspondência com a experiência (memória), geometrias anómalas ou fragmentos de uma realidade deslocada surgem das relações desreguladas entre os planos.

Por outro lado, o contexto é a base cartográfica da interpretação. O contexto é ele próprio o resultado de uma sobreposição mais ou menos extensa de redes referenciais, cuja interferência cria o relevo identificador da paisagem. É nesta que se inserem como anomalias os objectos estrangeiros, ou os objectos que sugerem outros objectos, ou os objectos desarrumados. O esforço de interpretação em contextos invulgares pressiona a imaginação a criar narrativas.

As condições extremas de luz (trevas ou luz branca absoluta) no contexto da visibilidade e as condições extremas das relações entre objectos (perspectiva, disposição, associação, enquadramento) no contexto da compreensão são essencialmente isomorfas.

(…)

A luz e a sua ausência determinam relações de poder. A criação e a detenção da luz são um sinal de auto-afirmação.

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O homem que nasceu na luz é tomado por relações de força nas quais a sua impotência determina apenas a sua fraqueza e nunca soberania alguma. Mas o homem que acompanhamos na sua descida subterrânea seguiu um caminho totalmente diferente. Regressa à negridão da terra para construir a sua definição ao pôr em causa a disposição das trevas e o destino do que as deverá iluminar. Vai transformar uma relação de forças na qual o real o esmaga numa relação imaginária que lhe dá a capacidade de nascer, logo, de ser a causa de si próprio, de se trazer ao mundo e de manter com esse mundo um comércio de signos. Não é o Sol nem nenhuma divindade fotófora ou luciferina que o ilumina. Não, é a tocha que acendeu com as suas próprias mãos. Ele está aqui, diante de um muro na noite cuja claridade foi produzida por ele.

Marie-José Mondzain, Homo spectator, Orfeu Negro, pp. 36 e 37

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Toda a informação é fragmentária e perspectiva. O intercâmbio social – cultura – cria e impõe formas-padrão para a organizar. Neste sentido, em situações específicas, a utilidade da cultura assemelha-se mais à de uma bengala, e menos à de uns sapatos de corrida. Resta saber se somos coxos por natureza ou por hábito.

Se uma série de imagens consiste em planos muito aproximados do terreno de uma região, poder-se-ia afirmar, de um ponto de vista tão redutor como o dos postais ilustrados, que essa região “é isto” (o referente das imagens). Por oposição, alguém diria que essas imagens poderiam ter sido colhidas em muitos outros lugares o que, em rigor, é impossível. Em ambos os casos, a verdade andaria longe e bastante mais no segundo.

A subtracção pode ser aditiva: pela redução intensifica-se a imagem, ganha-se em pureza na purga de pormenores (toda a afirmação de pureza decorre de um certo grau de cegueira). Ou seja, a ilusão fica mais fácil.

Em sentido inverso, a incompletude convoca os nexos, que se tecem sobre a matéria potencialmente sugestiva, sendo que este potencial aumenta com a procura dos nexos pelas razões já abordadas.

(…)

Inter-relações de velocidade e intensidade diversas (do 0 ao 1) são construídas, com variações regionais dentro da matriz de observação: fragmentos de coisas passadas ou membros possíveis de coisas futuras.

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Jónatas Rodrigues, Tratado sobre o Aparecimento, 2021

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Este livro integrou o projeto do seu autor na exposição Bolseiros & Finalistas ’20 do Ar.Co – Arte e Comunicação, em Lisboa, no Not a Museum, na Rua Castilho, nº 3, de 26 de junho a 10 de julho de 2021.

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Jónatas Rodrigues nasceu em 1970 em Setúbal, onde reside. Tirou as primeiras fotografias aos 13 anos, com uma velha Yashica 24 do pai. No entanto, foi a partir de 1996 que começou a fotografar de forma mais sistemática, embora para ‘consumo interno’. Em 2015 iniciou-se no trabalho de revelação e impressão em laboratório, a preto e branco. Em 2018 criou a chancela VISOR para publicações de artes visuais, de que o primeiro título foi o fotolivro “Sado” da autoria de Bruno Elias. Nesse mesmo ano ingressou no Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co, que concluiu em 2020. Em 2021, sob a chancela VISOR, publicou o fotolivro “Tratado sobre o Aparecimento”, que regista o projecto fotográfico desenvolvido nos dois anos anteriores. Nesse ano ainda continuou a frequência do Ar.Co em regime de Projecto Individual e participou na exposição de Bolseiros e Finalistas referente a 2020. A natureza da imagem fotográfica e os aspectos inusitados ou particulares da paisagem e dos objectos são, talvez, a área central do seu interesse.

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