FOTOGRAFIA: “REVOLUÇÃO NAS ARTES DO DESENHO”

Como O Panorama dava, em Portugal, em 16.02.1839, notícia do que seria a fotografia.

182 anos da apresentação pública da fotografia (19.08.1839 – 2021).

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Na sequência dos contactos efectuados na corte do rei Louis-Philippe, Jean-Jacques Mandé Daguerre demonstra os seus resultados – a fotografia, na técnica que seria conhecida como daguerreótipo – ao cientista Dominique François Arago, director do Observatório de Paris, secretário permanente da Academia das Ciências e deputado dos Pirinéus-Este. Arago fica fascinado com a descoberta e Daguerre consegue que este apresente uma comunicação à Academia das Ciências, o que acontece em 7 de Janeiro de 1839, sem no entanto revelar o segredo da sua execução, mas afirmando que os cientistas “Arago, [Jean Baptiste] Biot e [Alexander von] Humboldt, verificaram a autenticidade da descoberta, o que excitou a sua admiração” (NEWHALL, Beaumont; 1988, The History of Photography. New York, The Museum of Modern Art, 1988: 18-19). A comunicação foi publicada na véspera na Gazette de France, na Compte-rendu des Scéances de l’Académie des Sciences, publicação oficial da Academia, e a tradução inglesa na Literary Gazette de 19 de Janeiro.

O Panorama – “Jornal Litterario e Instructivo” da “Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis”, fundada sobre o patrocínio de Sua Majestade Fidelíssima a Rainha D.Maria II e presidida por Anselmo José Braancamp, iniciado na Primavera de 1837, que se publicava todos os  sábados, dava notícia, a 16 de Fevereiro de 1839, no n.º 94, vol. 3, páginas 54 e 55, deste evento.

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Devo referir que encontrei este texto na exposição “Flashback”, de Fernando Penim Redondo, patente na Biblioteca Municipal da Amadora, em S. Domingos de Rana (no FF, aqui). Agradeço a disponibilidade para a partillha do texto, com a grafia da época.

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Revista “O Panorama”, 16 de Fevereiro de 1839, n.º 94, Vol. 3, páginas 54 e 55.

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REVOLUÇÃO NAS ARTES DO DESENHO
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O INVENTO, ou descubrimento de que vamos fallar, merece um e outro título; a natureza e o engenho do homem, podem ahi apostar primasias. A natureza apparece retratando-se a si mesma, copiando as suas obras assim como as da arte, não em painéis presenciaes, inconstantes e fugitivos, como eram e são os rios, os lagos, as pedras e metaes polidos, mas em matéria que retem o simulacro do objecto visivel e o fica repetindo com a mais cabal semelhança ainda depois de ausente: isto pelo que toca á natureza. Agora pelo que respeita ao engenho do homem, foi elle quem a forçou a este milagre novo e inesperado. Duas coisas nos dão pena querendo escrever esta noticia; a primeira é que não possamos explica-la e circumstancia-la como cumprira, por fallecerem ainda as precisas e miúdas informações; a segunda que desse mesmo pouco com que um jornal de Paris, o Século, nos vem acenando, não nos consente a indole e extensão da nossa folha apresentar senão o pouquíssimo.

A camara luminosa ou óptica, segundo vulgarmente se diz, é formosa recreação de nossa infância, e nos permite viajar sentados n’uma cadeira, no canto da nossa casa, por todos os Portos, cidades e ruínas, bosques e desertos do mundo; mas se taes pregrinações nos não custam nem fadigas nem perigos, nem dinheiro e largos annos, tambem a idéia que nos trazem das coisas apartadas é pelo demais incompleta ou falsa; e todos esses quadros de mão humana são imperfeitos como tudo o que d’ella sae.

A camara luminosa levava grandes vantagens á câmara obscura em um sentido, se em outro lhas cedia; porque, se ahi o artista cercado de trevas via descer sobre o seu papel alvo e nú, as formas perfeitas, córadas e vivas das coisas externas, e dessas, todas as que lá por fóra senão levavam e fugiam, as prendia com o lápis e pincel, e compunha, ou antes copiava natural e verdadeiro o seu quadro; por outra parte o alcance desta sua magica era sempre mui limitado: e de mais, dado que as formas e cores que primitivamente ao seu papel fossem, nem podessem deixar de ser completas e exactas, como o prendê-las era trabalho de mão e instrumentos humanos; ahi vinham tambem forçosamente as differenças, os erros e quando menos os desprimores.

Da camara obscura saíam lindas recordações abreviadas do mundo circumstante; mas esses paineis eram mais formulas representativas do que emanações reaes dos corpos; mais retratos levemente desfigurados do que reflexos proprios, inteiros e absolutos, esses paineis, requeriam tempo, paciencia, arte e uso de uma palheta carregada de todas as cores do íris.

D’ora ávante porém, sem palheta, nem lapis, sem preceitos artisticos nem dispendio de horas e dias, que digo, sem mover a mão, sem abrir os olhos e até dormitando, poderá o viajante enriquecer a sua pasta com todos os monumentos, edificios e paizagens, das longes terras, e o amante mais hospede das bellas artes, obter por si proprio o retrato dos seus amores; tão ao natural como o traz debuchado no coração, e mais natural ainda porque não lhe faltarão as miudesas mínimas que a vista não alcança e que só a lente lhe poderia revelar. Os nossos leitores nos estão já aqui pedindo impacientes a solução de tão incrivel problêma; o que podemos é apontar-lha, isso vamos fazer.

Eis-aqui o que o senhor Arago relatou á academia franceza de cuja é secretario: o senhor Daguerre, famigerado pintor do diorama, andava, largos annos havia, todo embebido em procurar alguma substancia onde a luz se podesse imprimir, e deixar de si vestigios distinctos, que ainda depois d’ella ausente a denunciassem com todas suas modificações e circumstancias; para este fim andou batendo á porta das várias matérias e interrogando todos os corpos e invocando toda a natureza. Em tudo é a diligencia mãe da boa ventura. Encontrou ao cabo uma substancia como a elle sonhára, tão sensivel á acção immediata da luz, que esta lhe deixa os vestigios evidentes do seu contacto, d’esse contacto tão subtil e inapreciavel. Estes vestígios ficam representados por côres que teem em cada ponto uma relação perfeita com os diversos gráus de intensidade da mesma luz.

Não se cuide, comtudo, haver nesta estampa as proprias côres do objecto que ellas representam; não, as diversas côres dos originaes só são denotadas e significadas na copia, com uma extrema exactidão, pela maior ou menor força da luz, isto é, pelo maior ou menor effeito da impressão da luz: vae do original á copia uma differença a este respeito bem comparavel com a que faz uma gravura optima d’um painel a oleo cujo ella for perfeitíssimo traslado. O vermelho, o azul, o amarello, o verde etc, são significados por combinações de luz e sombra, por meias tintas mais ou menos claras ou escuras, segundo a somma de potencia clarificante que encerra por sua natureza cada uma destas côres. Mas o que é certo, apesar de todo esse desconto, é, que estas copias são tão extremadas, tem um tal relevo e tamanha verdade como se não pode imaginar sem as ter visto.

A delicadesa de traços, a puresa das fórmas, a exactidão e harmonia dos tons, a perspectiva aeria, o primor das miudesas, isso tudo se representa com a suprema perfeição. A lente, malsim terrível das maiores obras de desenho, que em todas encontra senões e desares inevitaveis para a arte, gire quanto quizer sobre estas figuras, fite n’ellas, quanto tempo lhe agradar, o seu olho inexorável, desesperar-se-ha de não descubrir senão perfeições, depois perfeições, e sempre em tudo perfeições.

Não ha porque nos espantemos: a luz, a propria luz, foi a pintora. Do pae da luz creáram divindade ás artes os fabuladores da Grecia; da fabula fez historia o engenho mais creador da nossa edade. Estas gravuras abertas pelo buril dos raios luminosos, estas estampas baixadas, porque assim o digamos, do ceu, mostrou-as o senhor Daguerre aos senhores Arago, Biot, Humboldt e outros, que todos ficaram suspensos e enfeitiçados.

O auctor limitado n’um pequenino espaço da ponte, chamada das Artes, trasladou toda a carreira de grandiosidades monumentaes que ufanam e affamam a margem direita do Sena comprehendendo aquella parte do Louvre que alardea a opulenta galleria das pinturas; e não ha linha, não ha ponto que não saísse perfeitíssimo. Da mesma arte apanhou aquella immensa e gigantesca fabrica de Nossa Senhora de Paris, com toda a sua profusissima cuberta de esculpturas gothicas. Mais fez, que repetiu o prospecto do mesmo edifício, ás oito da manhaã, ao meio dia e ás quatro da tarde, e isto em dois dias diversos, um de chuva, outro de sol; e todas estas vistas, sem exceptuar aquellas mesmas em que a extensão relativa das sombras é identica para quem as observa, teem physionomias tão próprias e tão suas, que n’um relanciar de olhos se adivinha a hora do dia e circumstancias atmosphericas em que se fez cada retrato.

E devendo parecer já isto a maxima maravilha, ainda ha outra e é a quasi magica ligeiresa com que se opera; oito ou dez minutos bastam no clima e ceu ordinariamente aspero de Paris para começo e remate de taes quadros; mas com ar mais puro e luz mais estreme, como no Egypto, um minuto bastaria. Todavia, diz o noticiador do Seculo, estas admiraveis representações das exterioridades da natureza, certamente por passarem por ellas mãos humanas, carecem do que quer que seja como objectos d’arte. Coisa admirável! Aquella mesma potencia que as creou parece ausentar-se logo d’ellas: estas obras da luz carecem de luz. Nos proprios pontos mais directamente clareados ha uma fallencia da vivesa e de lustre; e na verdade são umas vistas, que a despeito de todas as harmonias de sua impecavel perfeição, como que apparecem sob um ceu denso e boreal que se está esmorecendo e esfriando: parece que ao coarem-se pelo aparelho óptico do auctor, todas á uma se revestem do aspecto melancholico do horizonte quando quer anoitecer.

Segundo contra. Apesar da summa rapidez da luz, como o seu effeito na substancia do Sr. Daguerre não é instantaneo, qualquer objecto que se mova com velocidade ou lhe não deixa vestigios seus, ou só muito confusos. As folhas das arvores por exemplo, como aquellas que sempre se andam balançando no vento, ficam pelo demais mui perturbadas: mas onde só se pertenderem imagens da natureza sem vida, edifícios, monumentos, estatuas, ou cousas de semelhante género, ahi sim, ahi triunfa de todos os outros este novo methodo. Rosto de homem vivo ainda até hoje o não pôde retratar que satisfizesse. Mas o auctor ainda não perdeu a esperança de lá chegar.

É inegavel á vista do que levamos apontado, que este invento, um dos mais admiráveis de nossos tempos, terá largas consequências em todas as artes do desenho, e contribuirá não só para o progresso do luxo util e aformoseador da sociedade, mas também para o maior aproveitamento das viagens, quer sejam scientificas, ou artisticas, ou moraes, quer de simples divertimento e recreação. O auctor, porém, ainda não declarou o seu segredo; e esta immensa revolução, para arrebentar e espalhar-se por todo o mundo, só aguarda uma palavra d’elle, o seu fiat lux.

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No Fascínio da Fotografia, sobre a descoberta da fotografia: I – Os proto-fotógrafos, aqui; II – Niépce e Daguerre, aqui; III – O calotipo de Talbot e de Bayard, aqui e IV – Finalmente, a fotografia!, aqui.

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Cortesia: Fernando Penim Redondo

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