ANTÓNIO ALVES MARTINS, SUSPENSÃO, ECOS DE SILÊNCIO NA CIDADE EXPOSTA, 2021
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António Alves Martins
Suspensão, ecos de silêncio na cidade exposta
Fotografia e texto: António Alves Martins
Coimbra: Artes Breves Edições / Abril . 2021
Português / 15,5 x 17,6 cm / 56 pp + 1 imagem em extratexto 29,8 x 17,5 cm (aberto) + encarte no final com uma folha com texto, 14,5 x 17,0 cm (dobrada).
Brochura / 75 ex. numerados e assinados / N.ºs 1/75 a 25/75, edição especial com sobrecapa com impressão manual a acrílico (frente) e com uma fotografia original de Porta suspensa em fachada rosa – Marraquexe 2005 (fotografia a cores extra-série, impressa a jacto de tinta sobre papel Luster 240 g).
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O mundo é um grito. Ouves o grito? Ouve-lo?
Raúl Brandão
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Os maiores dramas passam-se porém no silêncio.
Álvaro de Campos
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Mais uma peça cuidada, este novo livro de António Alves Martins. Cuidada na elaboração, na impressão, na escolha dos papéis, em múltiplos detalhes.
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O livro, pensado como um encadeamento de momentos inevitáveis da cidade em suspensão (incluindo o encarte, de última hora), apresenta um texto de abertura (cujo título é ele próprio um momento autónomo), a que se segue uma série de três núcleos que abrem, cada um, com palavras roubadas-montadas de diferentes autores (Bernardo Soares, António Alves Martins, Raul Brandão, Álvaro de Campos e citação específica de um verbete do dicionário online Priberam).
Cada núcleo é composto por um conjunto de imagens (entre seis a oito). A obra termina com uma imagem-extratexto, dobrada, a que se junta um encarte (que inclui um texto escrito já depois de o livro estar impresso, texto esse que dá continuidade não só à última imagem, como ao texto de abertura (tudo leva a crer que o autor seja o mesmo).
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A abrir, escreve o autor (o título cita Bernardo Soares):
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Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.
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A primeira coisa que recordo é um som. Vinha de dentro, do interior da distância. Porém, o que sentia mais próximo era o negro, um negro com o peso antigo da ausência, Era aí que tudo parecia perder-se. Depois, o som sofreu um deslocamento; tornou-se cada vez mais impulsivo, mais caótico, como enlouquecido. Sufocava na turbulência desse som. Sem saber, sustive a respiração. Então, o som imobilizou-se e o negro fragmentou-se em milhares de ínfimas partículas abrindo a inconsciência da matéria em branco.
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Despertei. Aquilo só poderia querer dizer que alguma coisa estava para acontecer. Sublime inquietação! Nesse estado de suspensão, ainda enleado na matéria difusa do sonho, experimentava o desafio que a possibilidade infinita da potência em bruto sempre lança. Era possivelmente a um estado assim que os gregos se queriam referir quando falavam de epochè. Foi então que senti alguma coisa a reclamar a minha atenção. Virei-me e dei por mim a olhar fixamente um volume em forma de cubo, pousado na mesa defronte da janela envidraçada — imóvel, o negro provocado pela luz que entrava na manhã.
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Reconheci no cubo a caixa que Ernst me confiara na véspera e na qual, segundo me contou, guardava os registos fotográficos das viagens em que procurara «calar o insuportável silêncio do mundo». Se conseguiu, não o disse. Num impulso, abri a caixa. A aparente desordem das imagens e um bilhete manuscrito que encontrei junto lançaram-me o desafio. Não tardou a que me visse a dar andamento a um jogo de inesperadas combinações que as imagens iam tecendo. Na sua lenta aparência, ressoavam ecos de palavras como fechamento, apagamento, esquecimento, fractura, intervalo.
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No final do dia, a parede da oficina mostrava uma montagem em carrossel bastante impressiva — nela, reconheci não só o tempo da viagem que me estava destinado, como o possível sentido das palavras que o bilhete guardava:
O negro do grito queima o branco; nesse gesto,
o mundo liberta as imagens que dizem o seu silêncio.
Aqui.”
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No encarte, um texto escrito já depois de o livro impresso, António Alves Martins parte de uma citação de Jorge Luís Borges (ficções) e refere: “Como muitas vezes me vem acontecendo nos últimos tempos, quando acordado sou despertado pela presença súbita de imagens ou palavras que não esperava.” Partindo de Borges, “Surpreende-me quando me deixo levar pela cidade”, e passa pelo Bairro Alto, Alfama, Mouraria, o Largo de São Paulo, a Baixa de Coimbra. A cidade. Todas as viagens podem ser feitas na cidade. Mas regressa “sempre à oficina e ao inesperado das caixas que os amigos me deixam.”
O que sobra, não passa de restos de imagens que largo impressas num conjunto de folhas de papel. Fecho-as num outro tipo de caixa — um livro —, que abandono ao caminho. Ele, o livro, permanece como um dos raros objectos que abrem o grito suspenso do mundo.
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António Alves Martins, Suspensão, ecos de silêncio na cidade exposta, 2021
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António Alves Martins (Lisboa, 1959)
Foi professor de filosofia no ensino secundário público. Editou e publicou livros de alguns poetas: Gil de Carvalho, Alberto Pimenta, Jorge de Sousa Braga, António Ramos Rosa, Jorge Fazenda Lourenço, Constantin Cavafy, Philip Larkin [Centelha/Fora do Texto (Coimbra) e Kairos (Lisboa)] — e ainda Em silêncio, fotografias e texto de Ana Márquez [amedições (Lisboa)]. Colaborou com Edições Cotovia (Lisboa), coordenou a edição de catálogos de exposições em Lisboa, Madrid e Frankfurt.
Publicou os livros de fotografia “Na cidade exposta – Coimbra”, 2020 e “Suspensão, ecos de silêncio na cidade exposta”, 2021.
Edita e revê textos que lhe confiam.
Tem uma colectânea de crónicas urbanas — Cidades Materiais – publicada pela Deriva Editores (Porto, 2016). No campo da fotografia (impressa), realizou a exposição «Na Cidade Exposta: Coimbra» (Liquidâmbar, Coimbra, 2019).
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Pode ver sobre o livro “Na cidade exposta – Coimbra”, no FF, aqui.
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