RUI DIAS MONTEIRO, BASTA QUE UM PÁSSARO VOE, 2020

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Rui Dias Monteiro

Basta que um pássaro voe

Fotografia: Rui Dias Monteiro / Ensaio: Vítor Ferreira

Castelo Branco: Terceira Pessoa – Associação / Novembro 2020

Projeto “Rastro, Margem, Clarão”

Português / 14,7 x 21,0 cm / 64 pp

Capa mole, costura à linha aparente, interior / 350 ex.

ISBN: 9789893309926

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— veja como tudo se move. Basta que um pássaro voe para que o mundo entre em movimento. São estas as coisas muito simples que vejo. As únicas que posso pensar.

Rui Nunes, Álbum de Retratos

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Montemor-o-Novo, 2020. Rastro, margem, clarão. Para que o mundo entre em movimento: rezo, por fim, a oração que faltava. É também minha esta fotografia. Disse-te que a encontrarias. Havia imagens à tua espera nesse caminho, que, sozinhos e juntos, fizemos em diferentes dias, a diferentes velocidades, sob diferentes condições climáticas. Pago, por fim, o que te devo: uma cerveja Cristal, uma garrafa de água, num café em Paião.

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O título deste livro, sugerido por RDM, apropria-se do excerto acima transcrito, mas não o conclui. Ao invés, exige a quem vê as fotografias um exercício de imaginação. O exercício de ver deve ser, acima de tudo, uma dúvida. Basta que um pássaro voe: para quê? Cabe, a cada um de nós, ver, isto é, inventar uma ficção.

 (A luz é aqui diferente. Recorta os espinhos com a sua calidez)

 Depois da fotografia. Os dois pássaros já levantaram voo. O sol está quase a pôr-se. Fechemos, portanto, com o último fragmento de Álbum de Retratos, com estas derradeiras palavras tão exactas na sua gaguez:

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já não se sabe quem iniciou esta fala tão longa, foram nascendo dela as pessoas e nela sucessivamente se apagaram, algumas renasciam para completar descrições interrompidas ou prolongar desconhecimentos

 o mundo é uma floresta vária: diz o narrador. Sente quase terminada a sua própria aventura e teme a opacidade de uma casa definitivamente construída

 (eis o meu abandono)

 Ecce homo.

do ensaio de Vítor Ferreira (pp. 54-55).

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Este livro, juntamente com “Na imprecisa visão do vento” de Susana Paiva (imagem) e Diogo Martins (texto) e “Boca” de Valter Vinagre (fotografia) e Eunice Ribeiro (texto), formam um conjunto desenvolvido no contexto do projeto pluridisciplinar “Rastro, Margem, Clarão”, um projeto da Terceira Pessoa, “no qual um colectivo de criadores em artes performativas, artes visuais e ensaístas se propuseram pensar a escrita de Rui Nunes (n. 1945) nas suas heterogeneidades, nódulos temáticos e inquietações, numa abordagem arrojada e heuristicamente transdisciplinar.”

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O ensaio de Vítor Ferreira está repartido entre as fotografias de Rui Dias Monteiro, fólios de texto entre fólios de imagens. O texto é belíssimo, permito-me transcrever os parágrafos iniciais…

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conversámos tanto que deixámos de saber a quem pertencia o que dizíamos, às vezes, quando o outro falava, tínhamos a impressão de nos escutarmos, este facto tornava-nos ainda mais íntimos, de tal modo, que éramos uma única voz

Rui Nunes, Álbum de Retratos

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Islândia, 2018. A viagem começa num Lugar onde nunca estive. Agreste, assim o descreves. Posso, aliás, devo, contudo, imaginá-lo. (Pausa). No fundo, esta é apenas a continuação de uma conversa que se quer vagabunda, como diria o Nuno dois anos mais tarde. A teu lado: caminho, vejo, reparo, enfim, fotografo escrevo. Deixo-me levar pelo dento das imagens palavras, seduzido pela dança cromática, pelo ruído tão nítido da paisagem. Atento, lento, reformulo a tua interrogação: vale ou não a pena e levantar a máquina pena?

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Basta que um pássaro voe abre com cinco fotografias de Rui Dias Monteiro. Importa vê-las devagar, preparar o corpo, afiar os sentidos. Em suma, é necessário estarmos dispostos a sofrer o embate dum primeiro acidente: imagem contra palavra. A experiência de ver estas cinco imagens remete-me para as palavras de Paulo Nozolino, que, numa entrevista concedida a Nuno Crespo para o Público (2013), dizia sobre Rui Nunes: “ele gosta da fotografia porque diz sentir na fotografia uma verdade que a palavra já não tem”. E, no entanto, um ano antes, em Barro, RN indicava quiçá o único trilho ainda possível para que a palavra se aproximasse da verdade: “Escrever contra. Recomeçar dos escombros, com os escombros, de uma língua. Suspeitar da música das frases. Da melodia, essa trela, esse açaime. Tornarmo-nos suspeitos, com a raiva de quem sabe que, palavra a palavra, se ergue o muro da execução”. Todavia, quando se é escritor como RN — isto é, quando a escrita se impõe “quase como uma necessidade biológica” (cito-o a partir de uma vídeoentrevista concedida à Rádio Universitária do Algarve em 2015) — suspeitar das palavras, com as palavras, converte-se num doloroso e inesgotável ofício. Francelina, personagem de Grito (1997), repete obsessivamente a seguinte frase: “Há entre mim e os outros um grande desentendimento que se chama suspeita”. Reler: no lugar de os outros, colocar as palavras.

Caminhemos da suspeita à evidência: as primeiras cinco imagens de RDM exigem o silêncio. Imagino-as em grande escala, destacadas na parede de uma galeria. Imagino, ainda, o fascínio, passivo e comprazido, de quem puder vê-las. São fotografias duma paisagem sem interferência, dessa natureza que, imperturbável, existe para lá da linguagem humana. São fotografias que não precisam de quem escreva a partir delas. São fotografias que não precisam de fotógrafo.

Apresentemos um rosto: Rui Dias Monteiro (n. 1987), artista visual que escreve, desenha, fotografa. Embora a frase seja redutora e imponha uma ordem, convém salientar que estes são ofícios complementares, nunca hierarquizáveis. Mas é o próprio RDM que esboça a relação entre as diferentes práticas artísticas num poema escrito em 2020: “Não fazer só fotografia / não fazer só escrita / nem imagem imagem / nem palavra palavra / nem carne nem peixe / nem sopa nem pão / nem fazer só”. Se as artes se complementam, também a vida integra a equação, sugerem os seguintes versos do poema “Sim Não Mas”, do seu Reunião de pedras (2018): “Uma força de gigante / viver no medo dela / repetir até calar / desenhar e escrever para viver / foder e dançar / comer e dormir / amar e trabalhar / esses verbos que para mim vêm juntos / como prioridades”.

Segundo acidente: estas cinco fotografias contra RN. Como escrever a partir destas imagens, relacionando-as com a obra do escritor? Como escrever, aqui e agora, sobre fotografia e RN, esquecendo o que antes escrevi sobre a escrita ruiniana e as fotografias dum outro nome já citado (que elege o grão, o preto e branco, a morte)? A palavra paisagem é, enfim, o motivo que provoca este segundo acidente.

(…)

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Rui Dias Monteiro, Basta que um pássaro voe, 2020

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A exposição “Rastro, Margem, Clarão” decorreu em Castelo Branco, na Casa Amarela – Galeria Municipal, de 6 de novembro a 23 de dezembro de 2020.

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Cada livro da série “Rastro, Margem, Clarão” resulta de uma colaboração entre um fotógrafo e um ensaísta, “apresentando uma visão pessoal criada em torno de um universo inclassificável no panorama literário português: algures entre a forma e o informe, o medo e a raiva, a evidência intolerável do real e a vacilação das imagens”, a obra de Rui Nunes.

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Pode ver os outros dois livros no Fascínio da Fotografia: “Na imprecisa visão do vento” de Susana Paiva (imagem) e Diogo Martins (texto), aqui e “Boca” de Valter Vinagre (fotografia) e Eunice Ribeiro (texto), aqui.

Pode assistir a uma conversa entre os autores, aqui.

Pode saber mais sobre esta obra ou sobre a Terceira Pessoa aqui e adquirir o livro aqui.

Pode conhecer melhor a obra de Rui Dias Monteiro aqui e no Fascínio da Fotografia aqui.

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