LUÍS QUINTAIS, REGRESSARÁS À LEVEZA DO VER. UMA VIAGEM NO JAPÃO, 2020
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Luís Quintais
Regressarás à leveza do ver. Uma viagem no Japão
Fotografia e texto: Luís Quintais
Parede: Huggly Books / Dez. 2020
Português / 13,2 x 21,0 cm / 280 pp., não numeradas
Cartonado / 25 exemplares + 5 HC, todos incluem uma prova fotográfica assinada pelo autor
ISBN: 9781715796082
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“Este livro tem por referente uma viagem realizada no Japão em Maio de 2919. Nenhuma omissão é acidental.”, regista o autor, antropólogo de formação, poeta e fotógrafo de vocação.
A viagem está transposta neste livro em imagens textuais e imagens fotográficas instantâneas. As primeiras ocupam a página par, a página impar contígua em branco. As segundas ocupam a página impar, a página par contígua em branco. Entre as sequências de imagens e o(s) texto(s), um fólio em branco, com um “=”, como que criando um novo capítulo, uma nova etapa da viagem, um novo passo do encontro com uma cultura diferente.
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Transcrevo alguns textos, que nos guiam na sua vivência no Japão.
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Preserva a tua distância. Eles preservam a sua, sempre. Reconhecia o adágio. A ser rigoroso, não irás convocar nada mais do que a expressão pública de um gesto, a matéria de um movimento que é superfície, o significado sempre óbvio de uma aparência conquistada a pulso durante séculos.
O Japão irá permanecer uma superfície sem fundo. Não haverá modo de romper a película, atravessá-la e ponderar o seu núcleo. Talvez, aqui e ali, algo denuncie uma outra hipótese. Um vislumbre. Uma teoria acerca do vislumbre, do que permanece sem a mediação do tempo. Como se a verdade só pudesse ser revelação. A cultura será tão-só a impiedosa moral da experiência. Não podendo escrevê-la (livra-te da etnografia! Afinal um dia sonhaste ser antropólogo e falhaste o alvo e a vocação!), interpelarás, desde o início, o que pode pôr fim a esse compromisso da escrita com a mera representação dócil. No seu melhor, será o resíduo fóssil de um acontecimento antigo aquilo que te conduzirá.
Tão antigo e sem lembrança.
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Tóquio é a cidade infinita, onde aparência e essência se projectam uma sobre a outra, reivindicando a possibilidade de um referente último que se escapa, por indecisão ou fantasia, dos que, como nós, amadores ou turistas, permanecem definitivamente arredados do seu centro.
Do seu centro? 0 centro é vazio, atopia que tem por elemento simbólico a residência do Imperador, figura remota que o pós-guerra trivializou, mas que permanece como a emblematização atenuada do sagrado. Um sagrado que é, em grande medida, a tradução desajustada de algo de imanente à experiência que se revela através de uma palavra: ma. Espaço negativo, pausa ou intervalo são algumas das possibilidades semânticas implicadas, mas qualquer definição parece precária. E uma reivindicação do vazio, que o Zen irá elaborar sob a designação de mu, mas dir-se-ia que o seu sentido é um elemento estrutural da cultura japonesa nas suas múltiplas dimensões. 0 quotidiano permanece pleno de sentido, porque ele é o contexto do que não é mencionado, do que não é dito.
0 silêncio é o espaço em branco da interacção. As palavras e os gestos movem-se na fluidez do espaço.
Terá sido essa virtualização do significado que seduziu Roland Barthes em L’empire des signes, e é essa virtualização, essa região de tensão que excede as palavras, e que reclama o esplendor da revelação que percorre o haiku onde o sentido do poema é acedido de uma vez só.
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Kyoto é velha, muito velha. Ela vem do passado, sem acrimónia, sem aspereza, leve, feita de papel, subtil. Ela é a imagem de um tempo que, definitivamente, já não existe, mas que embriaga. 0 seu padrão geométrico, onde o recente e o cosmopolita circulam sem obstáculo, desviar-te-á dos desígnios espirituais da cidade, hoje talvez só património ou natureza quase morta. Não, a cidade não estará banhada numa luz rubra de bordos (momiji) incendiados, os mesmos que explodem nas páginas de 0 mar da fertilidade de Mishima. Não será outono quando preencheres as suas ruas com o desconforto de hesitações e encantamentos. Sentirás, porém, o peso do remorso e da elegia, da desconfiança que se diz viver entre portas em relação aos que permanecem sempre fora de portas.
A geografia sagrada da cidade reverbera ainda nos seus nomes. Serão porventura a memória deslustrada de um sentido perdido. Prazeres ascéticos de que se perdeu o rumo: «No sopé do Monte do Conhecimento (Hiei-zan), não longe da vila da Doutrina Ascética (Shugaku-in), está o templo da Luz Calma, isto é, do Nirvana (Ohara no Jakkõ-in). Do outro lado do vale está o Templo do Absoluto (Ohara no Sanzen-in). Perto da cidade está um templo dedicado a Manjusri, Conhecimento Encantador, o Apolo Budista (Manju-in), assim como o Pavilhão do Poeta (Shisen-do) e o Pavilhão de Prata (Ginkaku-ji).
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Regressarás à leveza do ver.
Um mestre escreverá: «É a criança que a si se embala, cantando / a mente».
Descobrirás que o Japão é a imagem na mente, salão de espelhos, mise-en-abîme. Por mil anos essa imagem contempla-te, enlanguesce, dilui-se depois no vazio do que foste, és, serás. Essa imagem é a canção íntima que te acolhe, protege. Ela confunde-se com a natureza compósita do tempo. Ela é o tempo e a ilusão do tempo.
O Japão não existe, escreverás no fim do teu livro.
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Luís Quintais, Regressarás à leveza do ver, 2020
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Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola. Antropólogo, poeta e ensaísta, leciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como antropólogo tem publicado ensaios em diversas revistas da especialidade sobre as implicações sociais e culturais do conhecimento biomédico, em particular sobre a psiquiatria e seus contextos. Desenvolve atualmente investigação sobre as interações entre biotecnologias, arte e cognição. Como poeta, publicou A Imprecisa Melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso Antigo (2001), Angst (2002), e Duelo (2004), obra a que foram atribuídos o Prémio Pen Clube de Poesia e o Prémio Luís Miguel Nava – Poesia 2005. A coletânea de poesia completa Arrancar Penas a Um Canto de Cisne venceu o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE/C.M. de
Amarante 2015-2016.
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