FERNANDO LEMOS, HILDA HILST, 2018

Amanhã passa um ano sobre a morte de Fernando Lemos (Lisboa, 3 de maio de 1926 – S. Paulo, Brasil, 17 de dezembro de 2019)

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Fernando Lemos

Hilda Hilst. Fotos e fotomontagens inéditas de Fernando Lemos

Fotografia: Fernando Lemos / Organização e ensaio: Augusto Massi / Apresentação: Danilo Santos de Miranda

S. Paulo SP, Brasil: Edições Sesc / 2018

Português/ 21,0 x 20,8 cm/ 108 pp.

Brochura

ISBN: 9788594931276 

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Há alguns dias, em Óbidos, naquela que é uma das mais interessantes livrarias – a Livraria do Mercado – na rua principal, em que as estantes são o aproveitamento das antigas caixas de frutas e de legumes, de madeira – que foram proibidas para utilização para alimentos e assim recuperadas – livraria que já falei aqui. Mas dizia eu, na Livraria do Mercado, encontrei um interessante livro, este que trago aqui.

Fotografias de Hilda Hilst, poeta, jovem, de 29 anos, pelo fotógrafo (e não só), Fernando Lemos, também jovem: tinha então 33 anos.

Seis anos antes, o artista português havia desembarcado em solo brasileiro trazendo na bagagem o seu teclado universal: poemas, desenhos e fotografias. Tudo atravessado por uma ars poetica de vanguarda.

Sua experiência estética não era produto somente de seu desassossego, de sua inquietação e de seu nomadismo. Fernando pertencia a um círculo de artistas e intelectuais que representava uma clara resistência à ditadura de Salazar. Esse grupo transitava com relativa liberdade entre um realismo crítico e um surrealismo tardio, e era composto por gente de teatro, críticos literários, pintores, bailarinos e poetas.

Havia entre eles uma relação de reciprocidade cultural e histórica. Fernando tornou-se o fotógrafo de uma geração; simultaneamente, o destino individual de cada um contribuiu para fixar a imagem futura daquele jovem artista, irreverente e inventivo, que seria redescoberto de rupturas e dissidências posteriores, sempre franqueou seu diálogo com as mais variadas vozes e correntes do movimento.”

Escreve Augusto Massi num excelente texto sobre o artista, “História do futuro”, mas também analisando o conjunto de quinze fotografias que Lemos fez a Hilda Hilst em 1959 – que abrem o livro – e as dez montagens que fez das mesmas, em 2017, passando pelas fotografias portuguesas de Lemos, pelo seu trabalho gráfico e pela obra de Hilda.

Um “ensaio leve e intenso, que reconecta a poesia e a fotografia de um período auspicioso, uma década de vigoroso avanço cultural. Além disso, desafia Lemos a produzir algumas releituras do antigo ensaio. / As fotomontagens, artifícios experimentados nas vanguardas históricas, articuIam fragmentos e suscitam um frescor visual e uma sensação de estranheza diante de imagens cuja existência era praticamente desconhecida.”, como regista o crítico fotográfico Rubens Hèrnandes Junior.

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Sobre a obra, escreve a crítica literária Eliane Robert Moraes:

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“Para o Fernando, todo amor de antes, da Hilda” — foi com essas palavras, simples e cifradas, que Hilda Hilst ofereceu um exemplar de seu novo livro de poemas a Fernando Lemos. O ano era 1974 e o título do volume deve ter chamado a atenção do destinatário: Júbilo, memória, noviciado da paixão. Somado à dedicatória, ele pode ter evocado no fotógrafo português as lembranças de seus primeiros encontros com a poeta brasileira, ocorridos duas décadas antes. Como ignorar aquelas páginas em que o presente do júbilo e o passado da memória se pactuavam para ensaiar um noviciado que esbarrava no “amor de antes”?

Ele tinha 33 anos de idade, e ela, 29, quando combinaram as duas sessões de fotografia que se sucederam em 1959. A essa altura, já se conheciam bem, não só pelos cinco anos de frequentação da mesma turma boémia do centro de São Paulo, mas também por algumas parcerias de trabalho. O encontro no diminuto ateliê do artista nada teve de acerto profissional, acomodando-se antes à ideia de um desejo mútuo, quiçá de um esperado olho no olho. Talvez tenha sido ocasião para uma troca de olhares mais densa, a exemplo da que motiva o eu lírico feminino ao “chamamento do amigo” ainda no livro de 1974: “Se te pareço noturna e imperfeita / Olha-me de novo. Porque esta noite / Olhei-me a mim, como se tu me olhasses”.

Não teria, então, o fotógrafo aceito tal convite antes mesmo da poeta tê-lo formulado em versos?

Talvez. Passados sessenta anos desse encontro, o que resta é a conjetura sem fim que as belíssimas imagens de Fernando Lemos provocam porque encerram mistério e beleza, incitando-nos a refletir sobre o mistério da beleza. (…)

Se há um tempo forte nas imagens deste livro, este é o noviciado. Tempo de inícios, de preparativos, de formações. Nele, testemunha-se um dos raros momentos de êxito da arriscada tarefa de fixar o brilho provisório da beleza. As fotos de Hilda Hilst por Fernando Lemos nos oferecem a oportunidade de vislumbrar o tempo luminoso de uma parceria em que se reconhece, antes de tudo, o noviciado do olhar.

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Fernando Lemos, Hilda Hilst, 2018

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Transcrevo o poema de Hilda Hilst,

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Dez chamamentos ao amigo

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I

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Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

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Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem

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Te olhei. E há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

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Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

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II

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Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é ágora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

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Há tanto tempo sua própria tessitura.

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Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

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III

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Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia

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E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

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Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga

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E amavio contente o amor teria sido

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IV

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Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.

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Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.

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Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.

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Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página

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Ilustrada da revista
Editorial, jornal
Teia cindida.

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Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

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V

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Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta

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E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido

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Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro

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Desmemoriado, coincidido e ardente
NO meu tempo de vida tão maduro.

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VI

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Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?

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Ou é mesmo verdade

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Que nunca me soubeste?

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VII

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Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda se lembras?

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Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes

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Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?

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VIII

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De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura

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Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.

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Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar.
Sem amargura. E que me deem

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A enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando

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— Fazedor de desgosto —
Que eu te esqueça.

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IX

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Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria da solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatas

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Sobre-existindo apenas
Porque à noite retomo a minha verdade:
Teu contorno, teu rosto, álgido sim

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E por isso, quem sabe, tão amado.

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X

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Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus

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Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
De graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim

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E me perdoa de ti a indiferença.

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Inicialmente publicado em: Júbilo, memória, noviciado da paixão.
(In: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.)

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Pode saber mais sobre Fernando Lemos no Fascínio da Fotografia, aqui.

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