BRUNO SEQUEIRA, SUNNY GUEST HOUSE, 1996
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Bruno Sequeira
Sunny Guest House – Índia 1993
Fotografia e texto: Bruno Sequeira / Design gráfico: Fernando Fadigas
Lisboa: Arquivo Fotográfico Municipal / Abril . 1996
Português / 21,0 x 21,0 cm / 28 p., não numeradas
Brochura / 1.000 ex.
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Este pequeno catálogo – que posso também considerar um fotolivro – é uma pequena delícia. A impressão cuidada das fotografias, em bicromia, pela Litografia Tejo (então a melhor casa para impressão fotográfica no nosso país), o texto escrito em capitulares, num corpo pequeno, o grafismo cuidado. A cor na capa: o talão da casa que dá o título à obra. O texto do autor, testemunho de uma vivência, que foi profunda – e que moldaria a sua vida.
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O Ambassador
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Uma tarde de calor, daquelas que fazem apetecer o Verão, resolvi ver mais uma vez as fotos do Ladakh. Sentei-me na cadeira da varanda. Escolhi um sítio onde as folhas dos plátanos filtrassem luz e o calor do sol. Comecei a correr os olhos demorada e saudosamente pelas imagens. Cada uma proporcionava-me uma viagem, no tempo e no espaço. Regressei vezes sem conta à Índia.
Antes de partir preparei cuidadosamente a viagem: consultei vários livros. Comprei coisas, medicamentos, rolos fotográficos. Muitos rolos porque na Índia há rolos, mas não há. Estudei itinerários. Viajei para o futuro e imaginei como seria, mas não imaginei que os planos me saíssem tão deliciosamente furados. O Ladakh era um sítio quase inacessível: atravessar o Caxemira, coisa para vários dias, era desaconselhado pela guerra civil. Sobrevoar os Himalaias, era por outro lado, desaconselhado pelo meu modesto orçamento. À chegada a Nova Delhi era mais um daqueles europeus que tentam desajeitadamente esconder a virgindade, e que são o sustento dos vigaristas. Foi ai que conheci Norbert, apaixonado da Índia; era a quinta vez que lá ia. Talvez ao olhar para mim se tenha revisto, se tenha lembrado de como a primeira vez se tinha sentido perdido naquele país tão longínquo e diferente. Aproximou-se:
– Anda comigo, sei o caminho para a cidade.
Percebi que podia confiar naqueles olhos.
Camioneta até Connaught Place, mochilas no “Sunny Guest House”, guest house é o nome pomposo para as pensões, e almoço num restaurante.
A calma dele contrastava com a minha precipitação. Devo ter sido cansativo, queria saber tudo, ou pelo menos tudo o que naquele momento me parecia importante. Mais tarde, quase no fim da viagem, apercebi-me que tinha demorado um mês para compreender superficialmente a Índia e os indianos, para me saber movimentar, para admirar um povo sempre pacífico e imensamente generoso ou terrivelmente ganancioso. E queria eu saber tudo durante aquela refeição que ainda por cima me estava a queimar boca e fazer suar.
Ele ia para o Ladakh e perguntou-me:
– Queres vir também?
Não podia e não me apetecia:
– Não, planeei ir para Varanasi a seguir a Delhi.
– Vem comigo até aos escritórios da Indian Airlines, não perdes nada.
Poucas horas depois de ter aterrado em Delhi percebi que não valia a pena fazer planos ou estudar itinerários, convinha sim saber os lugares que tinham interesse visitar e depois tornar-me leve e deixar-me arrastar pelos ventos que sopram em todas as direcções e que me levaram a sítios que eu suspeitava existirem mas onde nunca sonhei vir a estar. O Ladakh foi sem dúvida um deles.
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Candigarh, 8 da manhã: o “auto-rickshaw” estava nossa espera à porta do hotel. Tínhamos que estar no aeroporto às 8h30.
Pouco depois levantámos voo. Comecei a ver aproximarem-se os Himalaias (…) As montanhas estendiam-se a perder de vista.
Pouco depois já estávamos a sobrevoar o Ladakh. As montanhas tinham passado de um cinzento claro e escuro para uma mistura de castanho claro e ocre. Em baixo, no vale enorme corria o Indus.
Nessa região, árida como o Sáara, nunca chove. As montanhas impedem a monção de ali chegar. O Indus é alimentado pelo degelo de neves e glaciares longínquos. É nos “oásis”, que pontualmente surgem nas suas margens, que está concentrada a maioria dos cem mil habitantes que povoam o Ladakh. (…)
O brilho do sol era demasiadamente intenso e as sombras desagradavelmente frias. “A 3500 metros de altitude é necessário um período de adaptação à escassez de oxigénio. Não devem ser feitos esforços físicos nos primeiros dias”. Era isto ou uma coisa parecida que estava escrito num aviso enorme no hall do aeroporto.
Juntámo-nos com mais uns ocidentais e saímos para apanhar um táxi. Foi aí que conheci o “Ambassador”. Sabia que dentro dele estava protegido, sabia que ele me iria levar em viagens inesquecíveis. Nunca pensei que pudesse sentir tanto carinho por um carro. Verdade seja dita, não era um carro qualquer, foi naqueles dias uma das encarnações do meu anjo da guarda.
Durante a viagem para a cidade não pude deixar de reparar na expressão do taxista: um sorriso rasgado, imenso de bondade e contentamento. Já me tinham dito que os povos dos Himalaias eram muito sorridentes mas não pude deixar de ficar surpreendido pois o sorriso durou a viagem toda. Cheguei a achar que era por causa disso que estes povos tinham os olhos rasgados, gerações e gerações sempre sorrirem daquela maneira deveria alterar os traços do rosto. Se para além disso a selecção natural privilegiar os sorridentes então está encontrada a explicação para a configuração dos olhos dos orientais: foram povos originários das montanhas que se espalharam por toda Ásia. Voltei à realidade, tínhamos chegado ao hotel.
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Saímos do hotel ainda era noite. Fomos até casa de Tashi, o motorista e dono do carro. Alugar um carro implicava também contratar o condutor. O que, tendo em conta o tipo de estrada, era solução adequada. Fiquei contente quando entrei novamente no táxi, tudo era harmonioso e aconchegante. Deliciei-me a contemplar os detalhes da sua construção: os estofos, o volante, o quadro de instrumentos, o retrovisor, as maçanetas… Senti que aquele carro tinha vida, não era só um carro, era o “Ambassador”.
Aquela estrada fazia a ligação entre o Ladakh e o Caxemira, e eram precisos dois dias inteiros para percorrer os quatrocentos quilómetros de distância entre Leh e Srinagar. Ao longo de todo o caminho viam-se de tempos a tempos marcos a anunciar que aquela estrada era a segunda mais alta do mundo. Perto dali, entre a China e o Paquistão, ficava a mais alta de todas.
Durante dois dias corremos a maioria dos mosteiros da região. O que me entusiasmava era passear no “Ambassador” por aquela estrada sinuosa. Umas vezes no fundo duma ravina, outras vezes na beira de um precipício. Cruzávamos constantemente camiões, a estrada só era transitável alguns meses por ano, e durante esse período era necessário aprovisionar todo o Ladakh para o ano inteiro.
Mosteiro de Thikse, ainda era cedo e no terraço o sol ainda era suportável. Encostado a um parapeito sentia o vento fresco que subia do vale, trazendo com ele os cânticos dos camponeses. Aos pés do monte onde estava agarrado o mosteiro, espalmava-se a aldeia. Depois da aldeia os prados estendiam-se até ao Indus. Poucos quilómetros para lá do rio erguiam-se as montanhas enormes e coroadas de neve. Nesse dia decorria uma cerimónia religiosa no mosteiro. Ao meu lado estavam uma espécie de cornetas gigantes que iriam ser usadas mais tarde. Os seus sons guturais profundos iriam espalhar-se pelo vale anunciando o fim da cerimónia que não iriámos assistir.
De todos os mosteiros que tinha visitado, Thiksé era de longe o mais bonito, o mais bem conservado, e com uma numerosa população de monges activos.
O princípio de outubro era a época a seguir às colheitas e na aldeia trabalhava-se nas eiras, numas os cascos dos animais pisavam as espigas ao compasso das cantigas das camponesas, noutras os assobios dos homens e das mulheres misturavam-se para marcar a separação do trigo e do feno. Por todo o vale do Ladakh ecoava essa melodia.
Sentei-me junto a uma eira enquanto esperava por eles. À medida que o tempo passava tornava-se cada vez mais difícil suportar o calor no sol. Senti uma gota de suor formar-se na minha têmpora. Cresceu e escorregou lentamente pela cara até ao queixo, esperou uns instantes até se soltar. Acompanhei-a lentamente como se a queda dela demorasse uma eternidade. Quando embateu na fotografia, acordei. Durante o sonho o sol tinha-se deslocado até uma clareira das folhas batia agora em cheio na minha cara. Limpei a fotografia. Era a imagem do “Ambassador”.
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Bruno Sequeira, Sunny Guest House, 1996
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Bruno Sequeira (Lisboa, 1966)
Licenciatura em Engenharia dos Materiais pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Curso avançado de fotografia, da escola de fotografia Maumaus, de março de 1994 a dezembro de 1995.
2.º prémio da II Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1991 e menção honrosa na III Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1993.
Ensino da fotografia na escola de fotografia Maumaus, e na Escola Secundária António Arroio (Curso de Arte e Tecnologias de Comunicação Audiovisual).
É fundador e professor da escola de fotografia Atelier de Lisboa.
Realizou diversas exposições individuais e coletivas.
Está representado, entre outras, nas colecções do Centro de Estudos de Fotografia, Coimbra e da Galerie Municipale du Château d’ Eau, Toulouse, França.
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