ANTÓNIO ALVES MARTINS, NA CIDADE EXPOSTA – COIMBRA, 2020

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António Alves Martins

Na Cidade Exposta – Coimbra

Fotografia: António Alves Martins / Texto: António Alves Martins e José António Bandeirinha

Coimbra: Artes Breves Edições / Março . 2020

Português / 19,2 x 21,0 cm / brochura + 10 separadores e 9 fotografias

Portfólio (livro em forma de caixa) / Inclui brochura de 16 páginas + capa, agrafada, com os textos / “À brochura, segue-se um encarte com uma citação de Italo Calvino (em tradução de José Colaço Barreiros, numa edição Teorema, 1996), e um conjunto de nove fotografias, numeradas no verso em etiqueta marcada com o selo da casa editora.”, que inclui o título da imagem. Antecede cada fotografia um separador com o título, aberto em caixa a preto impressa sobre conqueror azul índigo 220 g / As fotografias são impressas em papel fotográfico “Fujicolor Crystal Archive paper Supreme” da Fujifilm / 50 + 1 exemplares, numerados de 1/51 a 51/51

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O catálogo das formas é infinito: enquanto houver uma forma que não tenha encontrado a sua cidade, continuarão a nascer novas cidades. Onde as formas esgotam as suas variações e se desfazem, começa o fim das cidades.

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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Este livro, esta peça, mostra o abandono que se sente na Baixa da cidade de Coimbra. Em nove imagens registam-se espaços abandonados, fechados a tijolo, janelas que espreitam… Uma realidade que se prolonga no tempo e que carece – há muito – de uma solução discernida e coerente.

A ordem de apresentação das fotografias é a seguinte: Cicatriz, Agarra-me, Encruzilhada, Sem saída, Fachada quase cega_3, Uma janela indiscreta, Do abismo, Corrimão e Abstracção material.

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O texto, de António Alves Martins narra a história deste projeto.

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De novo, um olhar!

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Em 2019 teve lugar uma exposição. Esse foi o primeiro momento de materialização no espaço público de um projecto que procura aliar a prática da fotografia a uma certa experiência de cidade*. Antes desse momento de exposição material, o projecto existia quase exclusivamente online, isto é, em linha. Vivia, por isso, num campo alinhado, sem deixar de estar, ao mesmo tempo, amarrado à dispersão indomável da etérea nuvem.

Entretanto, alguma coisa aconteceu: as imagens expostas no Liquidâmbar deram origem a um texto, e esse texto, da autoria de José António Bandeirinha, exigia ser publicado. Ele aqui está, antecedendo uma selecção das imagens iniciais, a que se junta uma nova janela indiscreta. As imagens aqui reunidas não são exactamente as mesmas que estiveram na origem do texto, mas elas não deixam mesmo assim, de afirmar, de novo, um olhar muito nítido que exprime vivência de um nível de abandono que uma certa espécie de esquecimento da cidade, quantas vezes interessado, torna demasiado manifesto para que possa ser ignorado. Porém, este olhar não restringe o universo possível inerente às imagens.

Esta brochura, em conjunto com as oito fotografias (+ uma) das dezasseis então expostas — agora em novo formato / suporte –, corresponde a um segundo momento dessa materialização única que dá acesso ao tempo propício a pensar e olhar a fotografia: a experiência concreta da imagem Impressa em folhas de papel que, embora soltas, são envoltas numa capa cuja janela abre para a narrativa do livro: o livro, como lugar privilegiado do tempo lento das imagens (ou do seu silêncio).

Termino com a transcrição de uma passagem do texto da folha de sala da exposição realizada no Liquidâmbar — ela enquadra de maneira inequívoca, o âmago do projecto, e é aqui apenas rasurada pela intrusão de duas palavras [entre parênteses rectos], palavras essas que fazem a ligação ao texto de José António Bandeirinha: “Coimbra tornou-se, assim, a cidade exposta — na dupla dimensão de paisagem e obra — e o que hoje aqui se mostra — nas imagens impressas da cidade — é o resultado de um processo que implica, em primeiro lugar, o assumir da caminhada livre, o movimento de um olhar disponível para o inesperado de um plano e das suas linhas de fronteira; um encontro ou uma escolha que pode determinar, também, a possível duplicação da imagem através da selecção de um pormenor que lhe escapa, se emancipa, tornando a cidade um lugar por vezes demasiado estranho — como se já quase não lhe pertencêssemos. Talvez [ isto ainda ] dê que pensar.”

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Coimbra, Março de 2020

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José António Bandeirinha, natural de Coimbra e doutorado em arquitetura, assina o ensaio “Ainda”, avançando com “Seis propostas para uma Coimbra (ainda)”, citando igualmente Calvino.

Refere que * «O primeiro texto, “Exposta”, tem como base um outro, “Exposed”, publicado em AA.VV., Coimbra (Coimbra- Centro de Artes Visuais — Encontros de Fotografia, 2003); o segundo, “Seis Propostas para uma Coimbra (ainda)”, aqui publicado pela primeira vez, tem por base o texto da comunicação apresentada no fórum FORIC I Uma Capital Europeia da Cultura do Século XXI, realizado no Convento de São Francisco, em Coimbra, no dia 16 de Março de 2019.»

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Ainda

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Vi as fotografias do António Martins.

Está lá tudo. Ou quase tudo.

Juntei dois textos, que escrevi antes. Um deles, muito antes mesmo, há dezasseis anos, e que, por essa razão, sofreu alguns ajustes. Outro agora, há apenas uns meses*. Isto já dura há muito.

Exposta

A decadência desta cidade está a tornar-se num cânone, num traço de carácter que lentamente se vai tornando clássico, do ponto de vista da imagem, do branding.

A primeira questão é: vale a pena celebrar a decadência?

Sim, pelas fotografias do António Martins, e por outras duas ou três razões, não mais. Parece-me óbvio que os momentos de exploração poética dessa decadência são escassos. Raros mesmo.

Vale a pena deixarmo-nos fascinar pela beleza das imagens dessa decadência, deixarmo-nos absorver pela sua expressão plástica?

As fotografias aqui reproduzidas procuram fragmentos de uma realidade complexa e em putrefacção, com o intuito de a abstractizar. Ousei pensar, contudo, que pudessem ter também a perversa ambição de corroer essa mesma realidade, ou seja, fazer com que a maldição a que esses momentos ficam sujeitos, quando incluídos no campo da objectiva, pudesse alastrar-se pelo domínio do real e corromper a decadência a que está condenado. Pensando melhor, acho que não, seria demasiada perversão. Afinal são só imagens impressas, belas imagens impressas.

Mas, apesar de tudo, há um estranho elã, que aproxima as fotografias — obras únicas, de valor intrínseco – da cidade quotidiana que reproduzem — cíclica, bastarda, vulgar. Como é isso possível, se as primeiras não cedem ao clichê, abjecto e mil vezes repetido, que procura incessantemente, mas sem sucesso, elevar a segunda a um estatuto iconográfico transcendente?

Para muita gente, para mesmo muita gente, confessada ou inconfessadamente, Coimbra não passa duma referência estereotipada. Mas o problema não é esse, o problema é que a repetição acrítica desse estereótipo desgastou o conteúdo e apagou o significado real. A sensação é que o que fica é um imaginário paradoxal e altivo que, embora radicado numa cultura urbana ancestral e identitária — e talvez por isso mesmo – foi ficando fossilizado, como ecrã obsoleto da realidade e da vida que se ia degradando face ao fluir dos tempos. Será que esse imaginário fóssil foi também alimentando um estranho e nunca resolvido conflito que esta cidade mantém com a sua própria renovação? Deixa-se degradar a realidade e arma-se um verdadeiro campo de minas em torno do imaginário, para o “proteger”.

A dualidade inerente a este confronto hostiliza todas as expressões da cultura do real, do momento, do espaço físico tal como é na verdade. É, de resto, essa hostilidade que faz com que os espaços que diariamente usamos, alguns deles altamente qualificados, se degradem inapelavelmente até à exaustão. Pertencem ao domínio do real, raramente são iconografias do imaginário mítico, pois essas lá vão sendo mantidas com sucessivas operações de maquilhagem barata.

Contrariamente ao que se possa imaginar, este confronto não está entranhado na comunidade, não o vemos manifestar-se corno obsessão colectiva, nem mesmo como complexo endémico, que possa absorver, ou sequer perturbar, o quotidiano de todos aqueles que, com naturalidade, usam, vivem e fruem a cidade. Talvez se manifeste condescendentemente quando a perturbação se torna insuportável, quando o escândalo se não pode escamotear, normalmente sob a forma de desabafo púdico, de constatação de uma fatalidade familiar.

A reprodução selectiva de um imaginário mítico para Coimbra, e o consequente distanciamento da realidade contemporânea, tem correspondido sempre a emanações de cima para baixo, a configurações balofas e exageradas das especificidades urbanas, frequentemente difundidas e incentivadas pelo poder, quer como referência taxonómica dos territórios do seu domínio, quer como artifício de perpetuação contratual do estatuto. Um estatuto que, tal como o imaginário mítico, tal como o real, se vai paulatinamente degradando, é preciso dizê-lo.

A cidade, através das expressões mais verdadeiras do pulsar urbano, através das contaminações culturais que podiam e deviam nutrir o seu ethos, tem sido asfixiada e fragilizada pela acção erosiva da insígnia mítica que o poder insiste em atribuir-lhe, não como motivação, mas como limite – “Cidade? És um espaço de boémia e de estudantes, agora também turístico, só podes reproduzir essa imagem, nem sequer penses ir além disso!”

Assim exposta, fica depois à mercê dos desígnios mais vis, dos voluntarismos mais mesquinhos, dos estigmas mais provincianos. Fica sujeita às utilizações voyeuristas mais perversas, deixando que a sua irrefutável beleza física seja explorada para fins licenciosos, para estimular prazeres privados e para cevar as mais diversas ambições de poder, em estado bruto. Assim vai envelhecendo.

Por isso, também por isso, o interesse destas fotografias pode residir na sua beleza, sem dúvida, mas vai para além disso. São objectos materialmente úteis, são multo úteis para nos conduzir à percepção deste estado de coisas. Podem ajudar a revertê-lo? Ainda será possível? Não sei. Mas sei que cada dia que passa se torna mais difícil acreditarmos.

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Seis Propostas para uma Coimbra (ainda)

Italo Calvino, nas suas célebres Lições Americanas, de 1984, preparadas para Harvard mas nunca proferidas, também designadas como Seis Propostas para o Próximo Milénio, ou Six Memos for the Next Millenium (sabe-se que Calvino gostou da expressão ‘Memo” na tradução de Patrick Creagh), recorre a seis conceitos que, segundo ele, deveriam ordenadamente guiar a nossa maneira de encarar o milénio — este milénio.

Não podendo imitar Calvino, vou então usurpar-lhe essa estrutura de conceitos e tentar adaptá-los àquilo que penso ser necessário a Coimbra, a todos nós, para que a cidade seja ainda possível.”

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Bandeirinha analisa assim a cidade sob o prisma da Leveza (Lagerezza — Lightness), da Acessibilidade (Rapidità — Quickness), do Rigor (Esattezza — Exactitude), da Visibilidade (Visibilità – Visibility), da Multiplicidade (Molteplicità — Multiplicity) e da Coerência (Coerenza — Consistency).

(…) A Coerência, posta, como Calvino a põe, em último lugar, não era certamente mais uma proposta, só pode querer significar a síntese de todas as outras.

A coerência é o fio condutor que nos permitirá incorporar os contributos mais díspares, saber escolher as propostas mais estruturantes e capacitar as mais pontuais, integrando-as no todo.

O oposto desta Coerência é a acção casuística, o ímpeto de ocasião, o gesto impulsivo do momento, sobretudo o mais perigoso, que é o alegadamente iluminado.

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Talvez ainda seja possível, apesar de tudo.

Ainda há muito para andar.

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Agosto de 2019

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António Alves Martins, Na Cidade Exposta – Coimbra, 2020

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António Alves Martins (Lisboa, 1959)

Foi professor de filosofia no ensino secundário público. Editou e publicou livros de alguns poetas: Gil de Carvalho, Alberto Pimenta, Jorge de Sousa Braga, António Ramos Rosa, Jorge Fazenda Lourenço, Constantin Cavafy, Philip Larkin [Centelha/Fora do Texto (Coimbra) e Kairos (Lisboa)] — e ainda Em silêncio, fotografias e texto de Ana Márquez [amedições (Lisboa)]. Colaborou com Edições Cotovia (Lisboa), coordenou a edição de catálogos de exposições em Lisboa, Madrid e Frankfurt.

Edita e revê textos que lhe confiam.

Tem uma colectânea de crónicas urbanas — Cidades Materiais – publicada pela Deriva Editores (Porto, 2016). No campo da fotografia (impressa), realizou a exposição «Na Cidade Exposta: Coimbra» (Liquidâmbar, Coimbra, 2019).

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José António Bandeirinha (Coimbra, 1958)

É arquitecto pela Escola Superior de Arquitectura do Porto (1983). Exerce profissionalmente e é Professor Catedrático no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Foi Pró-Reitor para a Cultura da Universidade de Coimbra (2007-2011). Foi Director do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra (2011-2013). É investigador do Centro de Estudos Sociais e Director do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (2002-2004; 2006-2007 e 2017-…).

Tem trabalhado sobre as consequências urbanas e arquitectónicas das práticas políticas.

Coimbra é o seu campo de estudo e de afeição (desde sempre).

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No próximo dia 7 de agosto, às 19:00 h, o PhotoBook Club Lisboa e o PhotoBook Club Coimbra são com António Alves Martins, sobre este livro. Uma conversa on-line. Para marcar, envie e-mail para <pbc@susanapaiva.com>. Até 07.08 de manhã recebe uma ligação de acesso à plataforma onde decorrerá o evento.

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Pode ver mais sobre este projeto no blog do Autor, aqui.

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