JOSÉ AFONSO FURTADO, DAS ÁFRICAS, 1991
Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas
Com ensaio de Maria Velho da Costa (Lisboa, 26 de junho de 1938 – Lisboa, 23 de maio de 2020)
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José Afonso Furtado
Das Áfricas
Fotografia: José Afonso Furtado / Texto: Maria Velho da Costa / Design: António Diogo / Supervisão da impressão: Luís Serpa / Tradução: João Gomes Cravinho
Lisboa: Difusão Cultural / 1991
Português e inglês / 24,1 x 30,9 cm / 96 p.
Cartonado (capa sem impressão no rosto) com sobrecapa / 1000 ex., edição normal / Impressão a três tons 175 linhas
ISBN(10): 9727091199
Cartonado (capa impressa no rosto) sem sobrecapa / 100 ex., numerados 1 a 100, assinados pelo fotógrafo, reservadas ao fotógrafo e ao editor
ISBN(10): 9727091202
Cartonado / Edição de luxo, 15 ex., numerados 1 a 15 e assinados pelo fotógrafo, com três fotografias originais em Agfa Record Rapid 30,5 x 40,6 cm, impressas e assinadas pelo fotógrafo, reservadas à galeria
ISBN(10): 9727091210
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Do texto “Das Áfricas”, de Maria Velho da Costa, escrito como que em diário, entre 7 e 10 de junho desse ano de 1991:
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7 DE JUNHO DE 1991
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Meio-dia
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É dia sete. Folgo com o propiciatório do número. Também a data prevista para a publicação do livro parece ser dezassete de Outubro. Dias fastos, os setes.
Há semanas que me perturba a presença da caixa da Agfa com as provas das fotografias dentro. As minhas leituras e algum cismar têm-se ordenado em torno, circum-navegando, por assim dizer, a presença desse objecto, dessas imagens sobre (sobre?) as quais, ou ao lado das quais, aceitei escrever.
Foi acaso leviandade. As fotografias amedrontam-me. É sobre esse efeito que tenho de trabalhar. Tanto mais que não afectam assim outros olhares que as têm visto. São belas.
São. Mas o que é o esconjuro de uns, ou do próprio autor (Auctor, actor, lembras-te? tão mais verdade para a fotografia que é um acto montado, outrora literalmente em tripé), pode ser tormenta de outros.
Reparo na já frequência da terminologia náutica nesta introdução: circum-navegação, tormenta. Água e luto, il materno abandono. Não há figura humana. A ausência de outrem na paisagem figurada é porém sempre ilusória. A imagem foi captada. Cativa, em mais de um sentido. Mas nestas é como se não tivesse lá estado ninguém vivo, de viva voz. E essa contradição, essa captura do silêncio, ou do silenciado, que fere a minha vista. Ouvida.
Se é de Africas que se trata, é de um continente perdido. Fulgurando de ausência. Chagado. Visão que contraria os que são apenas assediados pelas suas cores, pelo — pitoresco.
Verei se é isso que me perturba: o serem imagens do deixado de vez. Ou visão do revenant, a assombração.
Ainda bem que o dia de hoje está de Verão fosco. De manhã cedo esvoaçava uma nuvem de gotículas, como se caminhasse por dentro de uma nuvem descida, mas não com a mesma luz delas, que é crepuscular ou de muito cedo na madrugada, e então o tom de crepúsculo vem da vetustez ou da erosão ou da paragem das coisas.
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Três da Tarde
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E bom que não conheça bem o autor para lá da persona humorada sarcástica, da capacidade enquanto exercendo um cargo público, de homem muito bem-lido, como se diz curiosamente de alguém que lê muito e bem, que é bem-lido. Quando o apetrechamento discursivo e literário serve tantas vezes à ocultação. Gente que é ilegível com gala.
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Dei de comer aos animais, Julieta, a caturra (Nymphicus hollandicus) solta pela casa, o cão, Ema, entrada e saída por escritos e vida dos últimos anos. Tento evitar o tom universalizante do íntimo que é o de Gabriela Llansol. Mas ela é uma das presenças que estas imagens põem de tutela:
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Não compreendo, Myriam, a intensa suavidade negra da noite. Quando deixava de a ouvir, a encosta tornava-se íngreme, e os «batedores», numa grande angústia de sentidos, elevavam as vozes. Ela fazia crescer um arbusto entre as duas palavras separadas pela extinção da voz ou movimento final do silêncio.
in Phala, Junho 1991.
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E Irene Lisboa. O recato de um confessionalismo esquivo.
Ontem, a minha querida M. disse-me: Ele nunca fotografa nada que mexa.
Mas as plantas, as nuvens, a água.
Nada vivo. E eu depois pensei, Ou vivo com a lentidão voraz e ameaçadora da fotossíntese, das marés. A única excepção luxuriosa é a da luminescência da bananeira. Mas não é excepção, vista de baixo, de dentro, a câmara apenas mais próxima do seu pulsar íntimo ou pensar verde.
Há vozes, cruzamentos: O Mundo num jardim: infinito num grão de areia!, é o verso que antecede a epígrafe do L. F. Castro Mendes. O poema, Mundos Possíveis, tem por sua vez como epígrafe um verso de Blake, To See a World in a Grain of Sand. Não se sabe o que sabemos uns dos outros, nessa troca dos vocativos todos de que fala ainda outra tutela.
E não crês que isso te possa tirar energia do que vieres a fazer sobre África?
Se vier.
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Meia-Noite
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Como se ter estado em Africa fosse um filão de oiro, as Minas de Salomão, Mariazinha em Africa, I once had a farm in Kenia.
Mas Blixen escreveu Out of Africa contra o desalento, um luxo sóbrio até a sua cara se tornar um pergaminho. Os olhos assimétricos, a boca um estilete, primorosamente maquilhada, vestida, coifada. Carcomida por que entregue a uma finura implacável? Contida até nos contos que se dizem Góticos.
Nunca faço retratos, diz o José Afonso Furtado.
Nesse sentido, esta é a Africa onde os Masai não estão. Já não estão.
Um compêndio do desalento que nenhuma grande produção poderia — figurar.
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8 DE JUNHO DE 1991
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Dez da manhã
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Ninguém me obriga ou sequer pede que decifre o que aqui está visível: cento e quatro provas fotográficas, de formato um pouco maior que um postal. Foi por as ter visto e de alguma forma me corresponderem que aceitei escrever ao lado. Acho que a dificuldade vem disso mesmo: não há lado. Sei que o vedor (adiante direi porque me parece que esta palavra vale) não pode ter chegado às paragens (no sentido de imobilidade e de lugar) que dá a ver sem alguma forma de transporte e arrimo humano. Só que assim não parece. A única coisa móvel que perpassa pelas fotografias, e pela figura que coloco do fotógrafo, é o vento. O que não é dado ver pela omnipresença de águas, móveis ou imóveis (donde a nomeação de vedor), mas pelo adejamento de franças de canaviais, de palmares oblíquos. E a água em toda a parte, mesmo na secura de moles montanhosas ou pedras, sob a forma de luz húmida, nuvens de um céu espesso, quase sempre dominante no plano, enquadrado de um ângulo baixo, na impressão da prova (quase ia a dizer da página), é imóvel.
Nada sei de fotografia, essa arte, maneira de compor lentes, filtros e depois ácidos para a revelação muito pouco instantânea, de um instante exposto. Ou pouco mais que as alegrias domésticas de ver como ficou o rolo. Ou a reverência muda que sempre vi suscitar a grande fotografia, sobretudo a preto e branco.
Então, uma noite tardia do passado mês de Abril, opressa e intrigada por estas imagens, pus-me a tentar arrumá-las por unidades temáticas. O exercício aliviava-me, até entender que não era possível: os temas interpenetravam-se, são variações concertantes. Um céu de sol branco, lunar, a exaltação de uma tristeza extasiada, que contamina. De parcelas de ruínas, de habitações desertas (uns patéticos panos brancos sobre tectos de cubatas, sudários lençóis), árvores idosas e resíduos de troncos, canoas aproadas vazias ou imprestáveis, esplanadas marginais fulgindo desertas na morrinha, cortes de fortalezas, pontões estropiados, o acesso de cavalos do forte da Cidade Velha, com a melancolia do reboar dos cascos para sempre ausente. Por ali andaria a buscar aragem e guarida a capitania dos barcos que faziam a aguada na Ribeira Grande, a primeira cidade fundeada fora de Portugal e uma e outra vez a saque de corsários, até se mudarem a sede e os principais, e decaírem, e se entretecerem as pedras das ruínas e túmulos com os casebres de hoje, transmigradas com as almas e os corpos que abrigaram para outra cor. Há um murete barroco esboroado com fundo de silvedo e o mesmo alto céu descido. De figuração humana, apenas uma Lacrimosa tombal com urna sob o derramar de uma acácia em solo arenoso. Para ver que é figura humana e ornamento fúnebre, ao menos nesta prova, muito escura, é necessário intensificar o foco de luz sobre a imagem. Vãos de acesso murados ermos, praias ermas, a corrosão, a erosão de resíduos humanos por formações de líquenes, musgo, azebre e, sempre, infiltrações do poder de águas. Erosão pelas águas, símile do tempo que só a vida vegetal, longevo e invasor avanço, concilia com vida: a silhueta de uma imensa fronde, ao longe, tem em primeiro plano, ante ervas de água (arroz?), um charco de nenúfares com as flores fechadas para a meia luz. Um tronco largo, velho e escarificado, é apontado com as suas folhas, cicatrizes de braças, cortado da copa. Um arbusto cresce (ou agoniza) num charco, ria salobra, ou laguna.
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E também me lembrei muito de um jovem fotógrafo que conheci este ano, Luís de Palma, que tem no catálogo da sua exposição esta frase: Dark is my night, but darker is my day.
Falta-me saber alguma coisa das jubilações dessa sanguínea câmara obscura onde as provas demolham, surgem, e em quê difere do quarto em que aquele que escreve lembra, alucina e vê, sem pôr em perigo de consumpção as mãos, ou não de uma maneira tão visível, com ácidos.
Estava fatigada e agitada, porque era tarde e me tinha sentado no chão com as pernas em tesoira dos lados do corpo, o que é o contrário do propício à espiritualidade oriental, como postura. Rodeavam-me molhos de fotografias e não sabia como começar esta apreciação.
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Cinco da Tarde
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No outro dia fui ver, com os meus olhos de ver, o exemplar que o J. A. me ofereceu com dedicatória mordaz («… modesto tentame fotoliterário que colheu suas primícias ao sol do Tarrafal») das Canções das Crianças Mortas, com texto da Clara Pinto Correia e fotografias dele. A primeira coisa que me surpreendeu foi a ausência da última fotografia, descolada da página respectiva. Como desapareceu? Como é?
O disco com as canções de Mahler, gostaríamos de ter ficado convosco mais um tempo, O Augen, Ó olhos, está ainda na bagagem fechada que veio separada de mim de Cabo Verde, em trânsito. Não há mudança sem perda.
Procurei nessas fotografias a génese destas e achei sobretudo a coerência de um estilo. Mais alvoroçado, mais imediatamente encantador, com aquele mobiliário visto no limiar de olhar de uma criança, as escadas e túneis e arcadas luminosos, quase rosa no preto e branco, apesar da pobreza da impressão. Há uma colunada romântica à beira-lago sob ramaria e uma estátua em pedestal coberta e atada, cómica e surreal ao lado do tronco de um eucalipto. E o terraço da casa de Odeceixe, à beira-rio, onde levas de nós fomos felizes, onde trabalhei na Missa com este mesmo cão aos mesmos pés e a Maria Alzira me trazia um Martini seco ao fim da manhã.
Algumas fotografias são porém já deste ciclo, mais severo, lúgubre se não fora a exaltação do trabalho de ver. Ó olhos. E o saber dos enquadramentos certos, minado o bom gosto pelo pudor e pela nostalgia.
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Sete da Tarde
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Tristes Trópicos estes, com o retraimento da emoção que as grandes perdas induzem.
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Bem vejo a excepção da fotografia da bananeira, tirada me parece que há-de ter sido quase do seu interior. Aí socorro-me e insto a que se busque o que achei ao acaso e a propósito, de Francis Ponge:
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Os vegetais na noite.
A exalação de ácido carbónico pela função clorofílica, tal um suspiro de satisfação que durasse horas, como quando a corda mais baixa dos instrumentos de cordas, tão lassa quanto possível, vibra no limite da música, de puro som e de silêncio.
in Le Parti Pris des Choses, Fauna et Flora (tentame de tradução que te ofereço gostosamente, J. A.).
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E mais me ocorre que um trabalho de artes também deveria incluir em seus méritos os méritos que evoca, as memórias que ateia. Na comunidade científica, nada mais comum que o reconhecimento e enunciação obrigatória das fontes e afluentes, a safra da abnegação anterior e coeva. Mas das artes espera-se entretenimento e voz única, como nem dos santos-mártires. Castiga-se o reconhecimento e é possível singrar no pelouro da cultura sendo ignaro e alheio a ele.
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9 DE JUNHO DE 1991
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Uma da Tarde
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É hoje um daqueles domingos de Verão que começam sem aragem e com um céu azul brutal. O azul de metileno, metáfora jocosa que tanto agradava ao Carlos de Oliveira, fabro do turno da noite. E um céu que não há nestas fotografias. Mas também eu não me lembro de um céu nunca assim em Cabo Verde ou na Guiné, únicas Áfricas que conheço. Esta é a luz nua e crua.
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Os livros, as fotografias, são seres vivos que podem ser sonegados à vista, isto é, extintos.
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Onze da Noite
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À medida que o tempo me passa, há certamente uma diferença entre o susto e a cobardia, nestas matérias da relação entre um produto e o seu gosto, os talentos e o seu preço e estatuto. Nem derivo tanto assim destas imagens que parecem de uma catástrofe, ruínas, águas por si sós, vegetalidade, construções precárias ou periclitantes, cemitérios. Também eu não sei reflectir bem; sei retrair-me ou expandir-me e hesito na alternância (sístole/diástole; síncope/diáspora).
Quem nos guarda senão nos guardarmos uns aos outros da arbitrariedade, ou de uma arbitragem sem gosto em nada, ou do medo de ser expulso da cidade dos vivos, dos herdeiros, dos empregados?
Que ele não se pode muito de tudo sem patronos, boa fortuna, uma disciplina monástica. Trabalhar o desvio, acaso o desvario, dentro do jogo do mundo. Penso no Pedro T. como mestre disso. E na Teresa S., essa mais de uma ordem castrense. E há outros. Quanto a Agustina B. L., ela é o jogo do mundo. Sulfídrico e sublime.
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10 DE JUNHO DE 1991
DIA DA RAÇA, DE CAMÕES E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS
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Duas da Tarde
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As únicas vozes humanas que ouvi esta manhã foram as de duas mulheres do reino das mães (para seguir a designação produtora de náusea da Teresa S.), que passeavam os seus animais debaixo das árvores onde eu me sento lendo todas as manhãs sem chuva, dando largas a Ema e preferindo não falar nem ser falada. Sem êxito.
E a voz de Sophia M. B. ao telefone,
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navegavam sem o mapa que faziam,
in Navegações, o verso mais escorreito desse tema.
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a convidar-me a acompanhá-la a Tomar, às festividades do dia, ao prémio atribuído a Craveirinha. Com mal-estar, escusei-me com a promessa de cumprir o prazo de entrega destas notas, Das Áfricas. Depois lembrei-me que nos seus nós construtivos, cenas-fulgor, como ela diz, G. Llansol dá a Camões o nome de Comuns. E diz assim, o que me assentou como uma luva cirúrgica, neste tempo detergente e de parcos bálsamos:
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à medida que ousei sair da escrita
representativa em que me sentia tão mal,
como me sentia mal na convivência,
e em Lisboa, encontrei-me sem normas,
sobretudo mentais. Sentia-me infantil
em dar vida às personagens da escrita
realista porque isso significava que lhes
devia igualmente dar a morte.
in Um Falcão no Punho.
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Pus-me a escolher as fotografias que prefiro (aquelas que levo adiante, no sentido etimológico). Não sei se farão parte do livro, da escolha final do J. A.:
— o pequeno atol de rochas com ancoradouro;
— a nesga de onda que se vê intramuros;
— a rampa dos cavalos da Fortaleza da Cidade Velha;
— a curva da esplanada que ele disse que é em Luanda (ou foi a Manuela M. , angolana tão branca e fiel, estarrecida com estas fotografias?) com bancos e os socalcos redondos das árvores, sem árvores;
— a plataforma larga do ancoradouro estropiado;
— o muro esboroado da descida para a praia do Tarrafal;
— os resíduos de alicerces de pedra negra dentro do mar (que podia ser uma homenagem a Spielberg, Jaws, Queixadas, queixumes do grande branco que vem do mar e que apaixona, como Moby Dick);
— as quatro colunas decepadas de uma cobertura que abrigava, frente a um mar.
Poderia tentar dizer porquê estas, mas não me parece necessário.
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«Quando os portugueses chegam a Luanda, os africanos tomam-nos como cadáveres vivos, os Vumbi.
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Nossos pais viviam confortavelmente
no planalto de Luabala. Tinham vacas
e culturas; eles tinham salinas
e bananeiras. De repente eles viram
sobre o grande mar surgir um barco.
Este barco tinha asas todas brancas,
cintilantes como facas. Os homens brancos
saíram da água e disseram palavras que
não compreendiam. Os nossos antepassados
tinham medo, dizendo que eram os Vumbi,
os espíritos vindos do outro mundo.»
cit. por A. L. Ferronha, in O Confronto do Olhar.
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Não só parece oriundo de África o primeiro grupo humano, como também o primeiro núcleo de linguagem, a Ur-Sprache. Sendo assim, somos todos africanos e a África é onde se volta, mãe primeva, mãe-quimera. E os racismos incompetentes imposturas, ignorantes das vicissitudes climáticas e genéticas da melanina. Não somos só todos juifs allemands, como somos todos negros de origem, branqueados da deserção para o frio. O resto é história, também desumana.
Estas fotografias não tecem considerações. Nem contam histórias. Fixam alguma desolação da história, formas cadentes e Comuns.
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Sete da Tarde
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Chego ao fim da convivência com estas provas, que me fizeram derivar dentro e fora desta sala onde não trabalharei sempre e onde se acumulam já os sinais do desamor: as paredes e o tecto manchados das infiltrações do Inverno, os quadros retirados, livros no chão.
Não sei se estes escritos estiveram à largueza (como se diz à altura) desses espaços, cuja beleza não consola. Muitos deles referem o horizonte, visto de um ponto fixo que se recolhe do rumor humano, que escuta. Vento e água, vento e hastes. O que sopra onde quer e faz os homens instáveis e com pensamentos de angústia.
Nem me cumpre, por não poder saber, falar das gradações dos brancos, do grão de negros e cinzas ainda a apurar, estou certa, na câmara onde uma alquimia que desconheço trabalha os negativos. Fui-me deixando andar de feição a estas imagens, evocando a partir delas, revindo. A forma de diário (que usei durante tantos anos e até em interiores de ficção narrativa) surgiu assim, me parece, como adequada a um estado de vigília em trânsito, do alertamento na viagem que estas imagens convocam. O que não é menor mérito.
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Há um lugar na cidade da Praia que no Inverno brando, dadas as costas às casas, se despovoa. Uma pequena praia arrimada a promontórios baixos, que perde luz cedo pela descida do Sol detrás do planalto onde eu morava. A areia é ocre escuro, o crepúsculo cai rápido. Na minha memória de 1979, essa praia era uma concha luminosa, de águas mornas, colorida, um prisma ao sol. Voltei a vê-la assim, dez anos depois. Mas a imagem que hoje guardo, mais preciosa, é a de ir sentar-me nos degraus que lhe dão acesso a deixar-me impregnar do seu ser cinza, do horizonte indistinto da bruma. As vezes R. acompanhava-me e parecia ao longe, nas suas roupas compridas, caminhando à babugem das águas e detritos, uma pequena Dido inconsolável, achando no seu desgosto a sua paz. Era aí que eu descansava do desmantelamento do ser que eram os meus dias e reencontrava essa mansuetude vigil que é um direito do espírito.
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Essas paragens só são remotas para quem não pode vir a Si.
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José Afonso Furtado, Das Áfricas, 1991
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Este livro foi publicado por ocasião da exposição “Das Áfricas”, de José Afonso Furtado, organizada pela Galeria Cómicos / Luís Serpa, Lisboa, no Ministério das Finanças, ao Terreiro do Paço, em Lisboa, de 17 de outubro a 16 de Novembro de 1991, num ciclo de três exposições e correspondentes edições, que inclui “My Tangier”, de Daniel Blaufuks (11 de setembro a 12 de outubro de 1991) e “The secret agente”, de Jorge Molder (25 de outubro a 29 de novembro de 1991), esta na Galeria Cómicos / Luís Serpa.
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José Afonso Furtado (Alcobaça, 1953). Licenciatura em Filosofia. Curso de Formação de Fotografia do Instituto Português de Fotografia, instituição onde dirigiu o curso de História da Fotografia. Expõe desde 1984. Representado em múltiplas coleções nacionais e internacionais.
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Quando ouvi a notícia do falecimento de Maria Velho da Costa imediatamente me veio à memória este livro e o magnífico texto, que parcialmente partilho acima.
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Maria Velho da Costa nasceu a 26 de junho de 1938, em Lisboa. Licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa e tinha o curso de Grupo-Análise da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria. Foi ajunta do secretário de Estado da Cultura do Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (1979), leitora do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros do King’s College, Universidade de Londres (1980 a 1987), presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1973 a 1978) e adida cultural em Cabo Verde (1988 a 1991) e desempenhou funções na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e no Instituto Camões.
Literariamente, Maria Velho da Costa situa-se numa linha de experimentalismo linguístico que renovou a literatura portuguesa na década de 60, destacando-se no entanto na sua geração de novelistas pelo virtuosismo único com que manuseia a língua, associando à transgressão formal uma forte relação dialógica com obras da tradição literária portuguesa desde a Idade Média até à contemporaneidade. Nos seus livros, o ludismo desse diálogo é transmitido de várias maneiras, desde as citações até à escrita «à maneira de» Agustina Bessa-Luís ou de Nuno Bragança, por exemplo, em pastiche paródico de alguns dos seus autores de referência. A esta extrema riqueza vocabular e estilística, associa temas como o da intimidade infantil, o da linguagem-afectividade e o da condição feminina, este integrado numa temática mais ampla de cariz social. Foi, aliás, uma violenta crítica à mísera condição social, política e humana da mulher na sociedade portuguesa que resultou da escrita, com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – as «Três Marias» – das Novas Cartas Portuguesas (1972), obra que o regime, então já a entrar na chamada «Primavera Marcelista», não resistiria a condenar em tribunal por ofensas à moral vigente, dando origem a um processo judicial que movimentou cultural e politicamente a Europa e não só, chamando a atenção de forma particularmente veemente para o estado absurdo em que se vivia, na época, em Portugal.
A sua escrita situa-se, pois, numa linha de experimentalismo linguístico que viria a renovar a literatura portuguesa nos anos 60 e, como afirmou Eduardo Lourenço, é «de um virtuosismo sem exemplo entre nós».
É autora, entre outras obras, de O Lugar Comum (1966), Maina Mendes (1969) e Casas Pardas (1977), Prémio Cidade de Lisboa, O Amante do Crato, Da Rosa Fixa. São também seus Lucialima (1983), Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, Missa in Albis (1988), Prémio de Ficção do PEN Clube, e Dores (1994), um volume de contos em colaboração com Teresa Dias Coelho, ao qual foi atribuído o Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários e o Prémio do Conto Camilo Castelo Branco e o romance Myra (2008), Prémio Correntes d’Escritas. Na sua bibliografia, destaque ainda para a peça de teatro Madame, a partir de Eça de Queirós e Machado de Assis, um êxito retumbante de palco, interpretado por Eunice Muñoz e Eva Wilma, e Irene ou o Contrato Social, distinguido com o Grande Prémio de Ficção APE de 2000.
Em 1997, foi-lhe atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora, pelo conjunto da sua obra, que se encontra traduzida em várias línguas. Em 2002 foi distinguida com o Prémio Camões, cujo júri lhe elogiou «a inovação no domínio da construção romanesca, no experimentalismo e na interrogação do poder fundador da fala». O Prémio Vida Literária, da APE, foi-lhe entregue em 2013, dois anos depois de ser feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Em 2003 já havia sido feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Como argumentista, colaborou com os cineastas João César Monteiro (Que Farei Eu com Esta Espada?, Veredas, Silvestre), Margarida Gil (Paixão) e Alberto Seixas Santos (A Rapariga da Mão Morta, E o Tempo Passa).
Faleceu a 23 de maio de 2020, aos 81 anos.
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Biografia: ver em Wook, aqui e site da DGLAB, aqui, este com base no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999.
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