ADRIANO MIRANDA E PAULO PIMENTA, SÃO PESSOAS, 2020
Neste Dia Mundial do Livro…
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Adriano Miranda e Paulo Pimenta
São Pessoas
Fotografia: Adriano Miranda e Paulo Pimenta / Texto: Ana Cristina Pereira, Camilo Soldado, Mariana Correia Pinto, Patrícia Carvalho
Edição dos Autores / Janeiro . 2020
Português / 17,1 x 23,8 cm / 160 págs., não numeradas
Cartonado / Inclui folha com links para Áudio Testemunhos e Vídeo
ISBN: 9789893301340
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Folheio “São pessoas”.
São pessoas que se sucedem nos seus retratos e expressões, por vezes, paralelamente de olhos fechados e abertos, da vergonha e do medo e da vida, do sonho e da realidade.
Estão retratados através das suas casas, dos espaços de vivência, das suas coisas, poucas mas preciosas, porque poucas.
Estão retratados com a sua humildade e honra.
E olham-nos. De frente.
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São pessoas que “vivem em situações de pobreza”, por vezes, pobreza extrema e envergonhada, mas também situações de precariedade e exclusão.
São pessoas de norte a sul do país.
São pessoas de todas as idades e de várias áreas, a viver situações difíceis.
São “pessoas — reformados, desempregados, sem rendimentos ou precários — ” e outros que vivem situações de “isolamento, violência doméstica, toxicodependência… entre outros fatores que levam à exclusão e à pobreza”, como empresários que tudo perderam com a crise e “que muitas vezes passam fome”.
São 32 pessoas que “deram a cara e participaram voluntariamente” e contam as suas histórias.
São pessoas, é um alerta para a “enorme dimensão social que é a solidão, a exclusão e a pobreza, numa sociedade centrada no consumo, no lucro e na discriminação”.
São pessoas é “um ensaio fotográfico centrado no ser humano, na sua dignidade enquanto indivíduo”.
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O livro acolhe quatro textos que, de algum modo, enquadram as fotografias e dão-nos a dimensão da realidade.
Ana Cristina Pereira assina o texto “Um contraveneno”. Permito-me destacar alguns excertos:
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Tantas vozes nestas páginas.
Reconheço algumas. Consigo ouvi-Ias na minha cabeça. A mais nítida, agora, é a de Neide Conceição. “Quando estou a passear com o meu filho na rua, me perguntam: ‘É seu filho?’ ‘Sim,’ ‘Mas como?’ ‘Como é que fez um filho?’ Por amor de Deus! Não é por ter uma deficiência que não posso ter um relacionamento!…”
Podiam ser muitas outras. Conheci tantas pessoas com o Adriano Miranda e o Paulo Pimenta na prática daquilo a que estudiosos como o Luís Fernandes chamam jornalismo de desocultação. E há muitíssimas mais nesta situação em Portugal.
Os números mais recentes dizem respeito aos rendimentos de 2018. Pelos cálculos do Instituto Nacional de Estatística, nesse ano o limiar da pobreza fixou-se [nos] 501 euros por mês. Abaixo estava 17,2% da população. É a taxa mais baixa de sempre, ou melhor desde que o país começou a tratar estes dados — em 2003. Esse não é indicador que satisfaça quem quer perceber o que é a pobreza. Resulta de uma mediana. Perante um empobrecimento generalizado, como o da última crise, há um eclipse. Embora mais pessoas estejam aflitas para pagar as contas, menos contam.
Será mais útil atender às taxas de privação material, isto é, à capacidade que cada um tem de satisfazer necessidades básicas ou aceder a certos bens. Em 2019, 2,3% dos residentes em Portugal integravam famílias incapazes de garantir uma refeição de carne peixe ou equivalente vegetariano pelo menos de dois em dois dias. E 5,8% de pagar a tempo rendas, encargos ou despesas correntes 18,9% de manter a casa aquecida como deve ser, 33% de assegurar o pagamento de uma despesa inesperada sem um empréstimo, 40% de pagar uma semana de férias por ano fora de casa.
… “Sabemos quem são os pobres em Portugal”, como dizia o sociólogo Bruto da Costa. “Sabemos por que são pobres — desempregados porque não têm subsídio de desemprego ou esse subsídio é insuficiente; empregados pelo valor insuficiente ou porque trabalham por conta própria e não ganham o suficiente; reformados por o valor da reforma ser demasiado baixo; ‘inactivos’ com actividades não reconhecidas pela economia como domésticas.” Que podem fazer dois fotojornalistas?
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O Paulo apostou na diversidade. Quis incluir a pobreza que se mantém severa apesar do rendimento social de inserção, a pobreza que não é eliminada pelo trabalho a tempo inteiro e pelo salário mínimo, a pobreza que se disfarça nas artes, a pobreza que se alimenta de falhas nos serviços públicos… O Adriano preferiu as formas mais subtis. E elegeu a casa de cada um. “Interpretei a casa como o local de todas as angústias e alegrias”, diz. “A casa é a nossa confidente, a nossa caixa-forte. Também é a nossa montra.” O que revela uma sala sem móveis ou uma cozinha sem fogão? Se a pessoa está acamada, mas consegue sentar-se para quê fotografá-la deitada?
Todos, mesmo aqueles a quem acontece abrir o frigorífico e nada encontrar, têm desgosto e medo, mas também esperança e sonho. São pessoas. O Adriano e o Paulo desafiam-nos, aqui a olhá-las “olhos nos olhos”. Oferecem-nos um contraveneno para simplificações e estereótipos sobre as pessoas que vivem em situação de pobreza.”
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“Neste turbilhão” é o texto que assina Camilo Soldado:
Em dias de festa, a mesa é generosa. Há um corrupio de tachos e travessas que circulam em equilíbrio precário até que o suave bulício se extingue e todos se sentam para dar início a esse modesto acontecimento que é um almoço em família. Da mesma memória prodigiosa que conserva intactos alguns dos versos que absorveu dos cadernos do antigo regime, o avô recupera o episódio: “Ainda me lembro do tempo em que choravas com fome e frio, e nós sem ter com que te aquecer ou matar a fome”. De tempos a tempos, reaviva a mesma história que parece tirada de um romance neo-realista. Talvez o faça pelo contraste entre o que foi a sua vida até certo ponto e a mesa à qual está sentado. Com expressão de uma certa candura, de quem toca no ponto mais trivial deste mundo, insiste: “Não te lembras, pois não? Eras muito pequena, se calhar não, não te lembras”. A filha muda de assunto, diz que não vale a pena falar disso e tenta fazer com que aquele capítulo da conversa não se prolongue multo mais. O avô, que passou meia vida imigrado, tenta rematar com um “antigamente era tudo diferente”.
Esse “antigamente” – o termo de comparação que lhe é possível — é o país que deixou nos anos 60, em que a escassez, a miséria e o analfabetismo de muitos iam alimentando a fartura de poucos. A maré virou, veio 1974 e o país foi ensaiando a aproximação às médias europeias, num exercício abalado pela mudança da moeda e abortado anos depois, pelo turbilhão austeritário.
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Só depois veio um tímido refluxo, um período em que o país parece emergir, mas que significa também um processo de higienização e gourmetização das cidades, que faz caminho ao ritmo da subida do custo da habitação. Essa pressão continua a varrer para a sombra quem não se adequa à estética do lugar-produto. O dito país profundo, que começa à porta dessas mesmas cidades, encolheu viu sair serviços e vê sumir gentes, sem que pareça haver solução para tão estranho problema em tão pequeno país.
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Nunca perguntei à minha mãe se não se lembra ou simplesmente não quer falar sobre o episódio ao qual o meu avô vai voltando. E provável que não se lembre, mas também é provável que isso nem seja o mais importante. Depois de ter andado à míngua, o meu avô engrossou o contingente português que partiu para a pesca do bacalhau no Atlântico Norte. Regressou para dar o salto para França tal como milhares antes dele e outros milhares depois. Trabalhou nos arredores de Paris meia vida. Tem 87 anos e ainda trabalha. Foi assim que pôs os filhos nos bancos da universidade, o que, por sua vez, permitiu que o movimento se repetisse na geração seguinte. Acredita que de alguma coisa há-de servir o trabalho árduo. Eu tenho mais dúvidas. Há demasiados casos que nos mostram que o trabalho, por si só, por duro que seja, não é garantia de uma vida digna.
… Também aos poucos vamo-nos esquecendo de quem foi arrastado nessa voragem a que demos o nome de crise, de quem não conseguiu voltar a levantar-se ou de quem, simplesmente, nunca conheceu outra vida que não de privação. É para isso que serve este livro: para dar força a todos esses rostos através do fotografia de alguns, para os resgatar da sombra para onde foram empurrados e para nos lembrarmos de que o caminho a percorrer ainda é longo, neste país de 10 milhões com mais de 2 milhões de pobres dentro.”
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A jornalista Patrícia Carvalho escreve “Da perda e esperança”, fala-nos do fotógrafo Adriano Miranda:
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… Prefiro falar de Albina Araújo e António Silva, o casal de Gaído, Castelo de Paiva, que em Outubro de 2017 viu as chamas destruírem-lhe a casa, levando com elas todas as memórias que ali habitavam.
O Adriano fotografou-os na altura do incêndio e não deixou de os fotografar desde então. Algum tempo depois do fogo, quando eles já acomodavam o presente na antiga escola primária que a mulher frequentou em criança, aguardando que casa nova chegasse, o Adriano falava-me deles, preocupado, dizendo que devíamos continuar a seguir os seus dias até que a casa chegasse. Que não podíamos abandoná-los.
… Mas ele continuou a ir lá, uma e outra vez. De cada vez que havia uma desculpa, mas mesmo sem desculpa alguma. Só para ver se algo já tinha mudado (dois anos depois, ainda continuam na escola). Para não os abandonar.
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Mariana Correia Pinto fala de “A invenção de começos pelo fotógrafo sem pontos finais”, Paulo Pimenta:
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Quis ser jornalista para contar histórias, imaginando como seria melhor um mundo revestido de palavras bonitas. Pensava: as palavras podem salvar, corrigir, acrescentar, semear. As palavras são geografia de encontro, a parte do meio de dois extremos. Encontrei-me com o Paulo Pimenta nesse espaço gigante, onde eu buscava palavras e ele imagens, de costas para a indiferença e olhos num sonho qualquer. Mas o Paulo Pimenta, descobri, não era apenas um contador de histórias com fotografias. Ele era um inventor de começos — e, também por isso, não punha pontos finais mas fazia sempre historias completas.
Quem trabalha com ele sabe como é. A procura obsessiva, a insatisfação, a urgência de fazer sem pressa de terminar. Sabemo-lo no caminho certo por lhe conhecermos as dúvidas permanentes. O Paulo Pimenta fotografa como quem planta e, por causa disso, as imagens dele germinam em nós. Cheias de sentimento sem o escavar. Cheias de dor sem a explorar. Cheias de gente mesmo quando não a tem. Cheias de humanidade até quando a retrata do avesso.
…”
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Adriano Miranda e Paulo Pimenta, São Pessoas, 2020
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“São Pessoas “, de Adriano Miranda e Paulo Pimenta foi apresentado no Mira Fórum, no Porto, em 11.01.2020, no âmbito da inauguração da respetiva exposição.
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Conjuntamente com Hélia Bracons (ULHT – Universidade Lusófona, Doutorada, Curso de Serviço Social), elaborámos uma resenha sobre esta obra. Foi publicada em 10.01.2021 na revista Ehquidad: La Revista Internacional de Políticas de Bienestar y Trabajo Social, n.º 15 (2021): Enero-Junio , pp. 287-290. Ehquidad é editada pela Asociación Internacional de Ciencias Sociales y Trabajo Social, ISSN: 2386-4915.
Pode ver a revista aqui e o artigo aqui.
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Atualizado em 16.01.2021.
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