DANIEL BLAUFUKS, HOJE, NADA
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“Hoje, nada”, de Daniel Blaufuks, com curadoria de Sérgio Mah, esteve em exposição no Pavilhão Branco do Museu de Lisboa / Palácio Pimenta, ao Campo Grande, entre 22 de setembro e 24 de novembro de 2019.
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“Hoje, nada” é como Cesare Pavese resume um dia em Oficio de Viver. “Oficio de Viver” é também o título de uma série de Blaufuks, em que regista os detalhes da vivência quotidiana e familiar: como “O copo de água” ou “Caixa de plástico”, ou “Peça de roupa”, todas de 2010. Juntamente, imagens de “Attempting exaustion” / “Tentativa de esgotamento”, o registo praticamente diário da mesa da cozinha, junto à janela *, que agora se mostra também no detalhe do que se encontra sobre a mesa, como os limões (“20 de Julho de 2015 5:38”) ou o copo de leite (“21 de Setembro de 2015”), ou pela série de Polaroids “A primeira imagem, 2009”. Todas elas são imagens próximas na conceção e no conteúdo. “Hoje, nada” é também o nome de uma série de 2019, da qual apresenta a imagem de algumas poucas garrafas de água perdidas numa prateleira de supermercado.
Outras imagens, como parte do díptico “Berlin I, 2002”, de Collected Short Stories, ou “Sem Título da série Motel, 2005”, esta a que se afigura mais dinâmica, ou “The Ivory-coloured porcelain group”, 2014, Ecrã, 2003-2010 ou “Sem título (Cassetes), 2008”, da série Arquivo, para além da série “Dia positivo”, diapositivos comerciais de diferentes museus, que Blaufuks se apropria – ou mesmo diapositivos seus, como da série “Attempting exaustion”, apresentando-os em caixilhos de múltiplos diapositivos: sem iluminação por trás, a imagem praticamente se perde, ficando o texto do caixilho. Ou, logo na primeira sala, uma mão que parece chamar-nos (“Mão, da série Hiato, 2006”) ou a identificação “You are Here”, da mesma série, etiqueta que identificamos sobre uma maquete: onde não podemos estar, por ser maquete e, porque não estamos ali, naquele espaço, mas onde se encontra a imagem, um outro espaço qualquer. Ou, de facto, estamos ali: “You are Here”, perante aquela imagem, onde ela está.
A abrir a exposição, as imagens mais recentes: “Eternal camera 1” e “Eternal camera 2”, de 2018, duas, constituídas por dois pequenos espelhos, um em perfeito estado e outro com alguma degradação, questionam o medium: a máquina fotográfica é de facto um espelho, mas com memória. E a imagem é perfeita, mas com o tempo, degrada-se, quanto mais não seja, pela perenidade dos materiais que a constituem. E logo depois, um calótipo “O fotógrafo, 2012”, um retrato de um fotógrafo atrás da máquina: reprodução de um negativo em chapa de vidro que Blaufuks possui.
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Sérgio Mah, comissário da exposição, escreve na folha de sala:
A obra de Daniel Blaufuks releva uma peculiar mistura entre (auto)biografia e análise histórica, viagem e registo diarístico, factografia e ficcionalidade, predisposições de uma atitude artística e meditativa sobre as realidades que habitamos e sobre o passado que as afecta, entre o colectivo e individual. Através da anotação de momentos, espaços e objectos da vida quotidiana, frequentemente submetida à articulação entre o valor histórico e o potencial rememorativo da fotografia, o trabalho de Daniel Blaufuks distingue-se também por uma persistente reflexão sobre a natureza e o potencial perceptivo da imagem.
Hoje, nada (resumo de um dia por Cesare Pavese em Oficio de Viver) reúne um conjunto muito diversificado de fotografias e objectos — de várias séries anteriores e algumas obras inéditas — que nos dão a ver lugares, coisas, gestos imobilizados, e imagens que assinalam modos de inventariar e arquivar. Destacam-se os planos fechados e aproximados, à distância de uma mão, de um corpo. Podemos encará-las como imagens vagas, difusas, esquivas, que parecem procurar contornar o seu referente. Ou podemos simplesmente assumi-las como asserções do carácter factício, precário e parcelar da imagem.
Que experiência do real nos suscita cada imagem quando nada parece acontecer? Como é que a imagem nos olha e nos indexa a um passado? De que modo somos projectados por cada imagem para lá do visível, para lá da representável? Estas são questões frequentemente suscitadas por Daniel Blaufuks mediante uma prática visual que clama para uma outra atenção, uma outra disponibilidade perceptiva, entre a apreciação estética e a especulação narrativa e temporal, susceptível de nos conduzir para uma rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas sempre adiadas, que parece reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades da imaginação e da rememoração.
Sem obedecer a nenhum fio cronológico ou narrativo, estas obras surgem como peças de uma realidade necessariamente fragmentária, desconexa e centrifuga. Um mundo em suspenso e sem horizonte, onde quase tudo está fora de campo. Neste contexto, torna-se ainda mais evidente a atracção de Daniel Blaufuks pelos domínios do literário e do cinemático enquanto categorias fortemente conectadas com o exercício especulativo e ficcional, com o valor de indeterminação das obras enquanto formas e meios legítimos (e necessárias) de representar e interpelar a realidade, reforçando as potencialidades da imagem enquanto signo que veicula a tempo enquanto imersão.”
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António Bracons, Aspetos da exposição #1, 2019
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António Bracons, Aspetos da exposição #2, 2019
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* Pode ver “Attempting exaustion” / “Tentativa de esgotamento”, no Fascínio da Fotografia aqui (exposição) e aqui (livro).
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