JORGE MOLDER, JEU DE 54 CARTES, 2017
Em exposição nas Carpintarias de São Lázaro, na R. de São Lázaro, 72, em Lisboa, de 25 de janeiro a 30 de março de 2019.
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Jorge Molder
Jeu de 54 cartes
Fotografia: Jorge Molder, Rafaela Bernardo / Textos Sérgio Mah, Joaquim Barbosa Ferreira Couto, Álvaro Brito Moreira, / Tradução: Laura Tallone, José Gabriel Flores
Santo Tirso: Câmara Municipal de Santo Tirso / 2017
Português e inglês / 28,0 x … cm / 128 págs.
Brochura / 500 ex.
ISBN: 9789728180614
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Todo o Pensamento produz um Lance de Dados
Mallarmé, citado por Sérgio Mah
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Jorge Molder mostra “Jeu de 54 Cartes”. As fotografias, realizadas ao longo do ano de 2017, têm por base a estrutura típica do popular baralho de cartas francês, constituído por quatro naipes de 13 cartas cada. A série de fotografias é composta por seis partes: 52 imagens repartidas por quatro naipes (Caras, Mãos, Bocados, Espectros), mais dois Jokers e a fotografia de um Gabarito.
Assim, as 55 fotografias que compõe a exposição são fragmentos de uma história que tem a ver com o mundo dos sonhos, no qual se assume como um jogador peculiar, suis generis, que encara o jogo como uma distração completamente desprovida do sentido dramático e espetacular que a natureza do ato em si mesmo encerra.”
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Jorge Molder conjuga nesta ampla série, talvez a sua série mais extensa, diferentes conjuntos de imagens: os naipes.
Se ao longo das suas séries anteriores, especialmente de 1985 a 2000, houve uma aproximação progressiva do corpo ao rosto e a parte deste (no caso de “Nox” ), para depois voltar a abrir o enquadramento, aqui apresenta novas imagens, como con-jogando diferentes séries, os naipes: as Caras (os rostos), nos quais uns fazem recordar alguns de outras séries, porém todas as fotografias são novas imagens, diferentes; as Mãos, uma série nova, se bem que pontualmente noutras séries encontramos algumas mãos, mas sobretudo em ações concretas e não em ações imaginadas, como aqui; os Bocados são fragmentos: do rosto mostrado ou escondido, a(s) mão(s), também – e em “Espectros” temos a figura a meio corpo ou corpo inteiro de Molder, num cenário sempre amplo, como que num movimento, numa indecisão ou angústia (mas que nos remete para as imagens de “Un dimanche”)…
Sempre o fundo negro, sempre a figura ou a presença de Molder, sempre ele, sempre auto-representado, fotógrafo e fotografado (exceção para a série “Un dimanche”).
No espaço amplo das Carpintarias de São Lázaro, as ‘cartas’ de Jorge Molder assumem o espaço.
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António Bracons, Aspetos da exposição nas Carpintarias de S. Lázaro, 2019
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Do ensaio que Sérgio Mah escreve no catálogo da exposição em Santo Tirso, “Jogo Figural”, destaco:
Comecemos pelas Caras. Uma sequência de retratos, na sua maioria frontais. O rosto mostra-se, faz uma primeira careta, para logo a seguir nos dar a sua imagem invertida, a face durante uma queda, o efeito da gravidade, ou simplesmente uma mudança de plano. Depois, o ponto de vista e a distância mantêm-se constantes, e a figura continua, exprime, dissimula reacções a algo ou alguém. A pessoa e a interposta pessoa. O duplo e a máscara manifestam-se, ora revelando-se ora ocultando-se. Aparecem e parecem, o doido, o céptico, o amargo, o traidor… caras que atiçam o nosso persistente impulso de querer decifrar indícios psíquicos e morais no rosto do outro.
No naipe das Mãos vemos um conjunto de imagens nas quais a expressividade da mão, a pose, denuncia uma intenção consciente, gestos enfáticos que manobram a espontaneidade e as suas possíveis conotações. As mãos fazem e dizem. Oferecem-se a uma observação perscrutadora: pele, poros, linhas, músculos, carne, ossos, rugas, unhas. Conjugando expressão teatral, quiromancia e observação anatómica, estas imagens encaram as mãos como a outra parte do corpo, depois do rosto, com uma acentuada capacidade expressiva, no que toca a suscitar e iludir sentidos, comportamentos e afecções.
Nos Bocados acentuam-se os movimentos da figura. O rosto e as mãos interagem, colaboram. As expressões são mais dramáticas. Pressente-se dor, temor, desespero, agonia. Por vezes o corpo dirige-se para baixo, cai, deita-se para encenar a sua máscara funerária. A relação com a câmara é também mais explícita. Os pontos de vista variam, de mais perto ou de mais longe. Por vezes, o olhar dirige-se vigorosamente para a câmara, para vincar um corpo a corpo, uma interpelação, como a imagem de uma boca que se aproxima, perigosa e intempestivamente, para nos defrontar com a visão de um abismo.
No último dos naipes, Espectros, o artista realiza uma sequência de gestos. Imaginamos uma dança introspectiva, física e mental. Os planos mudam, em segmentos de três imagens: começam mais altos e distantes, até ao ponto em que as figuras se assemelham a marionetes convulsas; depois, o olhar acerca-se da figura, intensificando a tensão, até o corpo se contrair, aparentemente dominado por sensações dolorosas.
Nestas imagens o corpo surge dramaticamente cercado pelo negro, um fundo misterioso e carregado de invisibilidade. Tal como noutras séries de Jorge Molder, o negro envolve, circunda a figura. É o elemento primordial de um campo potencial, no qual a luz tratará de providenciar o aparecer, o ver e o desaparecer. Enquanto dispositivo pictórico e perceptivo, o negro reforça a passagem do plano tridimensional para a superfície bidimensional da imagem e celebra a intermediação entre o visível e o não visível, entre o factual e o virtual, aponta para os caminhos intrincados da percepção, da memória e da imaginação. É um ambiente que tem o condão de reforçar uma ambiguidade perturbadora, como se estas visões e estas figuras fossem emanações de um estado hipnagógico, o estado alterado de consciência, intermediário entre a vigília e o sono, no qual o indivíduo está mais disponível à irrupção de outras frequências da visão.
Por fim, a imagem do Gabarito e as duas imagens dos Jokers, as únicas em que a figura está ausente. São imagens de objectos; respectivamente, um pequeno cubo (objecto medidor), a roupa comum a todas as personagens e o título da série. Objectos vagos, indícios de um puzzle irresolúvel, que dirigem o espectador para um estado de indiscernimento, sem visar o seu alheamento mas tão-só enredá-lo numa trama de imensas potencialidades subjectivas e projectivas. Vemos e imaginamos coisas, que são próximas de outras coisas, que remetem e derivam para coisas outras, como sintomas de um mundo de passagens, entre o real e o inventado, que activa no sujeito aquilo que ele tem de mais secreto e insondável – sonhos, memórias, visões, ecos, devaneios, evocações, delírios, alucinações.
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A noção de jogo é há muito um elemento recorrente no processo criativo de Jorge Molder. O jogo surge como uma actividade que nos incita a uma experiência heurística das coisas, que configura a possibilidade de abertura para tudo o que se desvia de convenções, categorias e estruturas de entendimento pré-estabelecidas.
Aplicada ao campo da arte é uma noção que certifica a arte como uma prática que formula as suas próprias regras, a possibilidade de preterir a intenção deliberada, a sistematização, o discurso prévio, a favor da experiência do possível, da espontaneidade e da disponibilidade interpretativa.
Como se sabe, o jogo é uma noção fundamental da literatura e da arte modernas, pelo menos desde Stéphane Mallarmé e de Marcel Duchamp1. O jogo prefigurou um modo privilegiado para repensar as articulações entre a vida, a arte e a imaginação. Somente tratando a vida e a arte como um jogo, acreditava Duchamp, seria possível denegar ou contornar o modo como certas “verdades” e “leis” construídas pelo pensamento racional tendem a constringir a vida em sociedade; como também seria possível impugnar o suposto valor universal e absoluto do pensamento científico, de modo a reencontrar uma liberdade e uma independência sem limites nem constrangimentos2. É neste contexto que se desenvolve a ideia de uma estética do acaso, uma predisposição conceptual em que as fronteiras entre ciência e arte, obra de arte e experiência, arte e não arte, são completamente dissolvidas e reformuladas.
Não é a primeira vez que Jorge Molder evoca a figura do jogador ou fotografa cartas de jogar. O acto inicial do jogo das cartas é o baralhar, o misturar e o desarrumar, para deixar que as forças do acaso abram o destino a um imenso (e em parte incontrolável) horizonte de possibilidades. O jogo e, correlativamente, o acaso e a intuição, são portanto condições decisivas nesta pesquisa em que Jorge Molder correlaciona o trabalho de desmultiplicação das (suas) figuras com os dilemas essenciais da nossa relação com a imagem. Ora, se as imagens parecem indeferir a expectativa de um Eu único e original, primeiro e autêntico, porque cada indivíduo é também constituído pelas suas mutações e pelos seus substitutos, ao mesmo tempo alertam-nos para a natureza paradoxal da relação entre a fotografia e cada figura que representa. O que há de verdade e o que há de factício, naquele corpo, naquele gesto, naquela expressão? Como distinguir as nuances de separação e de sobreposição entre imagem e representação, entre realidade e fantasia, entre o Eu e o(s) Outro(s)?
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1 Destes dois autores é de destacar duas obras seminais relacionadas com a ideia de jogo e acaso: o livro Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado por Mallarmé em 1897, e de onde foi retirada a citação em epígrafe; e o trabalho 3 stoppages étalon, realizado por Duchamp em 1913-1914.
2 Ver Herbert Molderings, Duchamp and the Aesthetics of Chance. Art as Experiment, New York, Columbia University Press, 2010.
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António Bracons, Aspetos da exposição nas Carpintarias de S. Lázaro (A série “Jeu de 54 cartes”, de Jorge Molder), 2019
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Esta série de Jorge Molder foi apresentada pela primeira vez no Museu Internacional de Escultura Contemporânea, em Santo Tirso, de 27 de outubro de 2017 a 21 de janeiro de 2018, que editou o presente livro, que inclui além dos textos institucionais, o ensaio de Sérgio Mah, “Jogo Figural”, a reprodução do portfólio que constitui a série “Jeu de 54 cartes” e um conjunto de fotografias desta exposição, de Rafaela Bernardo.
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A série apresenta-se de 25 de janeiro a 30 de março de 2019 nas Carpintarias de São Lázaro, na R. de São Lázaro, 72, em Lisboa.
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Nascido em Lisboa, em 1947, Jorge Molder estudou Filosofia na Universidade de Lisboa e, desde 1977, quando fez a primeira exposição individual, tem vindo a mostrar o seu trabalho em galerias, centros de arte e museus em Portugal e no estrangeiro.
Privilegia a imagem a preto e branco, a representação teatral de espaços vazios ou habitados por personagens, elas mesmas em coreografias teatrais, e quase sempre retratando-se a ele próprio.
Foi o artista convidado da 22.ª Bienal de São Paulo (1994) e representou Portugal na 48.ª Bienal de Veneza (1999).
Recebeu o Prémio Associação Internacional de Críticos de Arte/Portugal 2006/7 e, em 2010, o Grande Prémio EDP Arte.
“Rei Capitão Soldado Ladrão” foi a maior mostra mais recente do seu trabalho em Portugal, em 2013, repartida entre o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado e o Museu da EDP, em Lisboa, e viria a ser apresentada em Madrid.
Em 2015 mostrou obras na coletiva “Olhos nos Olhos”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, apresentada na Galeria de Exposições Temporárias.
Está representado em coleções como a do Art Institute of Chicago, Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, a Maison Européene de la Photographie e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
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Pode folhear ou descarregar o livro “Jeu de 54 cartes”, de Jorge Molder, edição da Câmara Municipal de Santo Tirso, 2017, aqui.
Pode ver sobre Jorge Molder (incluindo a série “Un dimanche…”), no Fascínio da Fotografia, aqui.
Pode ver um vídeo sobre o projeto e com uma conversa com Jorge Molder aqui.
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