MARIA LAMAS, FOTOGRAFADA E FOTÓGRAFA. POR JOSÉ GABRIEL PEREIRA BASTOS
35 anos da morte de Maria Lamas (Torres Novas, 6 de outubro de 1893 – Lisboa, 6 de dezembro de 1983)
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A fotografia teve um papel significativo na vida de Maria Lamas – na recolha intimista de memórias biográficas, na documentação do seu grande sucesso social, liderando a promoção das mulheres, a partir dos anos 30, como responsável também pela dimensão fotográfica da grande reportagem que foi As Mulheres do meu país, bem como no registo da sua luta política pelo mundo, a partir de 1935, com a co-fundação da Associação Feminina Portuguesa para a Paz.
Para além desta grande reportagem, que demorou dois anos a concretizar, um dos quais percorrendo o país de lés-a-lés (1948-50), seis álbuns seus, repletos, estão depositados no Espólio 28 da Biblioteca Nacional, adquiridos pelo Estado, com fotos que cobrem mais de sete décadas de vida ativa no século XX, de 1912, no interior sul de Angola, até à sua morte, já na década de 80. É nestes álbuns que se encontram as fotografias da sua vida aqui reproduzidas.
Obviamente, filhas, entead@s, outros familiares, net@s, amigos e camaradas retiveram muito mais documentação fotográfica sobre a vida e obra Maria Lamas. E muito mais poderá ser obtido a partir de uma revisão da Imprensa desses anos. Estes três conjuntos, dela e sobre ela, merecem uma pesquisa aprofundada para a qual não existe projeto.
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Os Álbuns apresentam seis fases:
a Maria Lamas familiar, de Torres Novas, antes de vir para Lisboa, divorciada e com duas filhas;
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1913 | Maria Lamas | Torres Novas | regressada de Angola com as duas filhas (Mimi e Manuela, recém-nascida), do 1º casamento com o oficial de cavalaria, Ribeiro da Fonseca, que permaneceu em África mais um ano
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a Maria Lamas do forte do Capelongo, a primeira mulher europeia no interior sul de Angola;
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1912 | Maria Lamas e a filha Mimi no forte de Capelongo
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1912 | Maria Lamas (fotografia de?) | A filha Mimi no Forte de Capelongo
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a Maria Lamas apaixonada por Ferreira de Castro,
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1930 | Ferreira de Castro|foto no álbum pessoal de Maria Lamas
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1929 | Maria Lamas apaixonada por Ferreira de Castro
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que a levou para O Século, presente na cadeia de sucessos culturais que liderou como ativista da promoção das mulheres pela educação e pela cultura, numa forma própria de feminismo, focado no trabalho e na independência económica, muito distante dos ideais fálicos das sufragistas britânicas e do exibicionismo das “mulheres fatais” cosmopolitas, divas encandeantes do cinema italo-americano;
a Maria Lamas ativista política, prisioneira e exilada na Madeira e em Paris, Mãe-coragem dos exilados, empenhada na dinamização cultural, sempre promovendo a Unidade das estilhaçadas oposições ao regime, na pátria, em Paris e em Argel;
a Maria Lamas ativista internacional na Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM) e no Conselho Mundial da Paz (CMP), entre 45 e 75;
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1957 | Maria Lamas | discursando numa sessão do Congresso Mundial pelo Desarmamento e a Paz, em Tóquio
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a Maria Lamas regressada, homenageada e vivendo os anos 70 com o seu novo amor, Mário Neves, jornalista, o corajoso repórter dos massacres de Badajoz, seu companheiro desde 1935 até às manifestações da Revolução de Abril e futuro embaixador em Moscovo.
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1974 | Maria Lamas | Desfile do 1º Maio, com Mário Neves (por trás, à sua esquerda)
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1974 | Maria Lamas | Desfile do 1º Maio, com Mário Neves e a mulher
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A estas seis fases há que acrescentar uma sétima fase, a Maria Lamas repórter de As Mulheres do meu País, numa grande reportagem sociológica e política, de Kodak na mão, mas os originais destas fotografias não constam do espólio.
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1935 | Maria Lamas | Ex-libris “Sempre mais alto”, utilizado pela primeira vez no seu romance “Para Além do Amor”, em que faz o luto do amor impossível com Ferreira de Castro porque Cunha Lamas lhe nega o divórcio, e a fuga para o estrangeiro não é solução (cf. Para além do amor, 1935), uma vez que tem a cargo três filhas dependentes, que há que proteger da sua vida amorosa e política, adversas ao regime.
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A fase mais intrigante é a do Capelongo, um forte de terra na fronteira sul, a quinze dias de viagem a cavalo e em carros puxados por dezenas de bois, a partir de Sá da Bandeira, parte de uma cadeia de fortes de fronteira que pretendiam suster raides dos agressivos Cuanhamas e, sobretudo, dos alemães da Namíbia, como se verificará com o massacre de Naulila (1915). Estamos no final de 1911, Maria Lamas viaja de barco no final da sua primeira gravidez, chegando a Luanda a cinco dias do parto, feito num quarto do Hotel Salvador Correia de Sá, para acompanhar o Marido, o jovem e sedutor oficial de cavalaria Ribeiro da Fonseca, oficial às ordens de Carmona em Torres Novas, que ganha tempo de promoção se fizer uma comissão na Colónia, pressionado pela jovem esposa, a ‘Joana d’Arc ‘ que usa cabelo à garçonne e monta a cavalo à homem, para ir para o perigoso interior porque seria muito desinteressante ficar numa cidade pequeno-burguesa da costa angolana, era então Norton de Matos o governador da Huíla.
Nos álbuns, esbatidas pelo tempo ou pela deficiente fixação, permanece uma dúzia de fotografias focadas no forte e na filha de um ano, a brincar ou montada num cavalo. Quem fotografou, Maria Lamas ou o marido, não se sabe e o interesse destas imagens vai para a data e para a presença da fotografia de reportagem, desde tão cedo, na vida de Maria Lamas, 35 anos antes da notável reportagem fotográfica de 1947 a 50.
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1912 | Maria Lamas (fotografia de?) | A filha Mimi no Forte de Capelongo
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A investigação feita no Espólio mostra que, na sequência das suas reportagens no Mediterrâneo (1934), publicadas em O Século, a grande reportagem esteve projetada desde antes de “As Mulheres do meu País”.
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1934 | Fotografia de Maria Lamas | Em reportagem no Mediterrâneo, a bordo do Carvalho Araújo, em S. Juan les Pins, para o jornal O Século.
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Em 1944, foi convidada pela Legação Americana em Lisboa para ir para o terreno e escrever um livro sobre “a Mulher Americana”, durante quatro meses o livro que a incensada antropóloga Margaret Mead, numa fase de produção da ‘descrição’ dos grandes povos do Mundo (China, Japão, Rússia, América, Inglaterra, etc.), se recusou a produzir, por considerar que a pertença cultural ao povo investigado criaria um viés que anularia a imparcialidade. Entusiasmada com o desafio, obteve o passaporte, preparou quatro meses de edição do Modas & Bordados, que orientava com enorme sucesso desde 1930, mas, para sua surpresa, João Pereira da Rosa opõe-se. A carta em que Maria Lamas, angustiada, pede ajuda a Ferreira de Castro, que tinha grande ascendente sobre o dono de O Século, permanece no espólio, numa época em que Maria Lamas propõe a Ferreira de Castro mediar junto do multimilionário Rothschild o financiamento de um filme sobre uma obra sua, que pressionava para que fosse Eternidade (1933), romance em que figura centralmente como ‘Elizabeth’, vindo pouco depois a apoiar entusiasticamente a candidatura do autor de A selva (1930) ao Nobel de Literatura de 1951 que, a resultar, teria antecedido o de Saramago de quase meio século. Ambos serão admitidos no Pen Club de Paris, uma década depois (Maria, em 1958), mas a “sua Obra”, desaparecida, estava ainda a ser escrita por mais duas décadas.
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1936 | Maria Lamas | Inauguração das exposições que promoveu para o suplemento do século de Modas e Bordados-Vida Feminina / Salazar observa o tear, à direita
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Começa com a proibição de ir para a América escrever uma obra que lhe daria, de imediato, grande visibilidade internacional, o agravamento da crise que a levará a ser despedida sem justa causa ao fim de quase 20 anos de trabalho dedicado, eficiente e glorioso, para si e para O Século (1947), uma vez que o “Modas” era a única publicação rentável do Grupo Editorial. O pretexto para o despedimento sem justa causa? O ter-se recusado a abandonar a Presidência do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), para que fora eleita em 1945, o que assustou o regime, dada a fogosidade e o prestígio empresarial de Maria Lamas, que se confirmou com a adesão de duas mil sócias, coma imediata criação de grupos profissionais, de delegações regionais, da adesão de largas dezenas de pupilas da “Tia Filomena” às lutas juvenis e universitárias do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, de que fora co-fundadora, e com a organização da Exposição de Livros Escritos Por Mulheres (1.500 originais e traduções de Obra literária, científica e política, antiga e moderna, de 35 países de 3 continentes), nos salões da Sociedade Nacional de Belas Artes, que a direção do CNMP, tendo sido avisada, desmontou na véspera da PIDE intervir, ao fim de uma semana de exposição, selando na mesma altura a sede do Conselho (CNMP).
Nada que travasse Maria Lamas que, uma vez casadas as três filhas, se dedicará à Revolução Democrática, com um denodo aguerrido e acutilante. Participa na campanha de Norton de Matos (1948) com uma conferência em que termina confrontando o regime (Será que o Estado Novo tem medo da consciência esclarecida das mulheres?) e aparece como co-fundadora do Movimento de Unidade Democrática e do MUD Juvenil, aí, ao lado de Maria Isabel Aboim Inglês, como ‘madrinha’ 30 anos mais velha de jovens estudantes como Soares, Cunhal, Zenha, Margarida Tengarinha, Maria Barroso e centenas de outros, entre os quais as largas dezenas das ‘Joaninhas’ da ‘Tia Filomena’. Quando o velho Candidato desiste e, de seguida, Soares e os socialistas se afastam da Frente Unitária, Maria não aposta, como aqueles, nos vencedores Americanos nem baixa os braços e aparece, em 1949, ao lado de Ruy Luís Gomes e de Virgínia Moura, dez anos mais novos, a co-liderar o Movimento Nacional Democrático (MND), que pretendia prosseguir a luta unitária, o que lhe valerá nova prisão, não sem que, aproveitando a quarentena da sua papeira, ainda tenha enviado uma Carta pública ao Ditador, em que reafirma, em seu nome e da Direção já presa em Caxias “que, sejam quais forem os obstáculos, riscos e provações, que tenhamos que defrontar, nos manteremos unidos e inabaláveis na luta pelas liberdades fundamentais e pelos direitos do povo português.”
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1950 | Janeiro | Maria Lamas |de seis meses de prisão política em Caxias, por co-liderar o MND (Movimento Nacional Democrático), para o hospital dos Capuchos, ainda presa
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1950 | Maria Lamas | a direção do MND – Movimento Nacional Democrático, comemorando a saída da prisão (Ruy Luis Santos, engª Virgínia Moura, Pinto Rodrigues, José Morgado, Albertino de Macedo Pinto Gonçalves e António Areosa Feio) – Maria Lamas é 10 anos mais velha que os dois seguintes, que serão libertados bem antes dela
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É aqui que a vida de Maria Lamas concretiza a mudança do amor impossível por Ferreira de Castro pelo ativismo internacional ímpar, “para além do amor”, agora sublimado pelo amor à humanidade que lhe vinha do cristianismo da sua adolescência, do republicanismo do pai e do primeiro marido, do anarquismo de Ferreira de Castro e da devoção à promoção das mulheres, ela que desde 1936, já separada do segundo marido, que nunca lhe concedeu o divórcio que lhe solicitara, reagira à guerra civil de Espanha assumindo-se como co-fundadora e depois, como Presidente da Comissão Feminina Portuguesa para a Paz, motivada pelo grande amor da sua vida e a convite de Cândida Ventura.
Depois do final da Guerra Mundial, será presa três vezes, forçada pelo regime ao exílio no Funchal (de 51 a 52 e de 54 a 57), para não continuar presa e, mais tarde em Paris, por duas vezes (de 57 a 59 e de 61 a 69), para poder representar as portuguesas e os democratas em luta nas grandes instituições idealistas da sua geração (a Federação Democrática Internacional das Mulheres e o Conselho Mundial da Paz), integrando a Direção e fazendo conferências por capitais das duas Europas (de Ghent a Estocolmo e a Moscovo, Bucareste, Tirana e Berlim Leste) e das duas Ásias (de Ceilão à China comunista e de Tóquio a Hiroxima), entre 1946 e 1975, já com 82 anos.
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Nada parou Maria que publica, em 1946 e em 1949 os primeiros excertos da Obra da sua vida (Livro de amor e O despertar de Sílvia), à data visando tornar visível o primeiro volume (O despertar) de Confissões de Sílvia, a que se seguirão, até 1974, O caminho, A luta e Tempo de exílio, que, no seu todo, permanecem ‘desaparecidos’, apesar de terem sido depositados, com testemunhas e acta passada, pouco antes da Revolução de Abril, na Biblioteca Nacional, por Maria e por Ferreira de Castro, conjuntamente com a Correspondência amorosa entre ambos (31 a 37), para serem publicados (a partir de 2013), 30 anos depois da morte.
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Maria Lamas, Arquipélago da Madeira, Maravilha Atlântica, 1956
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Vivendo de traduções (como de Martin du Gard e de Marguerite Yourcenar) e de apoios dos genros e de amigos, alojada em casa de César Pestana e, depois, na da família de Aníbal Trindade, Maria escreve as “Cartas” de Vera, que a PIDE tentava saber quem seria, faz reportagens para o Ecos do Funchal e, a convite de Maria Mendonça, publica em livro a sua grande reportagem sobre o povo Madeirense Arquipélago da Madeira, Maravilha Atlântica (1956).
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1957 | Orlando da Costa com Babush ao colo (o filho António Costa) em postal de Boas Festas para Maria Lamas, assinado por ele e por Maria Antónia Palla. Orlando da Costa é o autor de um dos mais belos poemas da língua portuguesa em homenagem a uma mulher mãe de 3 filhas e ativista política, que sintetiza a vida de Maria Lamas nos versos finais: “Mãe te chamaríamos, companheira te chamamos”
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Em Paris, na casa dos setenta, apoiada por Jorge Reis e por Castro Soromenho, que lhe arranjam contratos para traduções na RTF – Radio Télévision Française e em editoras nacionais, Maria continua a ser “um furacão”, na expressão do jovem recém-chegado José Mário Branco. Logo em Dezembro de 62, a pedido dos exilados presentes assume a representação dos seus companheiros de sofrimento e de luta, na primeira Conferência dos Países da Europa Ocidental para a Amnistia aos Prisioneiros e Exilados Políticos Portugueses. Inscreve-se na Association des Originaires du Portugal (em Auberviliers, Seine), promove eventos culturais, colabora com a Liga Portuguesa do Ensino Popular (ligada à Ligue Française de L’enseignement Laique), sofre com o estilhaçamento da Oposição e com a confrontação estéril permanente, integrando, em 1964 (em nome da Frente Unida que sempre defendeu), um almoço em que a Unidade na Ação é negociada, em casa do Professor Emídio Guerreiro (pelo PSD e pela LUAR), com Humberto Delgado (pela Ação Armada) e Mário Soares (pelo PS), em busca de uma solução para o “Portugal amordaçado”.
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1964 | Paris | Maria Lamas com o Professor Emídio Guerreiro (PSD e LUAR)
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1966 | Argel | Maio | Maria Lamas viajando em busca da unidade da Oposição com o escritor Jorge Reis ao encontro de Manuel Alegre, Tito de Morais e outros socialistas – vive em casa do médico Rui Bernardino, também na fotografia
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1966 | Argel | Maio | Maria Lamas viajando em busca da unidade da Oposição, com Manuel Alegre e Tito de Morais
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Em 1966 desloca-se a Argel, ensaiando soluções frentistas, em diálogo com Manuel Tito de Morais (que estivera com ela no MUD) e com Manuel Alegre, adeptos da luta armada. E no Maio de 68 não tem descanso, vem para a rua com António José Saraiva, no apoio alimentar aos ocupantes da Sorbonne, deixando para trás Teresa Rita Lopes, vinte anos mais nova, que não os consegue acompanhar, tornando-se então, uma das personagens da crónica romanceada, de Costa Ferreira, um dos participantes da Revolução dos Estudantes, Uma vida em cinco dias. Entretanto, incentiva Helena Pato e tantos outros para que regressem a Portugal, criem o MDM (Movimento Democrático das Mulheres) e integrem os movimentos democráticos que por lá crescem, “porque é lá que é a luta”.
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Regressemos à casa de partida para a segunda volta ao tabuleiro. A fotografia, e a reportagem fotográfica estão presentes na vida de Maria Lamas desde muito cedo (tinha 18 anos a jovem mãe da reportagem fotográfica do forte do Capelongo). O que lhe permitiu acompanhar a grande investigação nacional do final dos anos 40 com uma reportagem fotográfica que ficará para a história mundial da fotografia feita por mulheres? Certamente a sua audácia e entusiasmo quase ilimitados, e a admiração que uma mulher assim suscitava, mas houve mais. Um genro (Fernando Carlos), que fará a decoração da obra, não era apenas um hábil desenhador, era um apaixonado pela fotografia, com um laboratório amador em sua casa. E outro genro (Joaquim Calixto) trabalhava à época na Kodak.
Em 2009, Jorge Calado concebe e organiza a Exposição Universal Au féminin. Women Photographing Women 1849-2009, apresentada em Paris, no Centre Culturel da Fundação Gulbenkian. Uma exposição que bem à maneira portuguesa pretendeu corrigir a injustiça feita às mulheres pelos organizadores, vinte anos mais cedo, da Exposição Internacional The Art of Photography 1839-1989, mostrada nesta última data na Royal Academy de Londres, em que apenas 4 autoras tiveram escassa representação entre 97 fotógrafos.
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Jorge Calado, Au féminin. Women Photographing Women 1849-2009, 2009
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No catálogo de Paris são selecionadas, de entre 100 aí expostas, de 5 continentes, oito fotógrafas que se destacaram pelo modo como fotografaram mulheres – a “imoral” Imogen Cunningham, Laura Gilpin, a britânica Julia Margaret Cameron, Gertrude Kasebier, Maria Lamas, Mme Yevonde, Diane Arbus e Mary Mattingly.
Os temas fotogénicos que as atraíram, temas de que falam e falam delas, vão das (I.) “Idades da Mulher”, a (II.) “Algumas mulheres”, (III.) à “Maternidade”, (IV) à “Casa”, (V.) ao “Exterior”, (VI.) ao “ Trabalho e Lazer”, (VII.) à “Moda e Compras”, às (VIII) “Estrelas e Deusas”, (IX.) a “Ficções e Metáforas” e à (X.) “Natureza”.
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Maria Lamas, As Mulheres do meu País, 1948
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Oito fotografias perpetuam nesta exposição de Paris as centenas de fotografias que Maria Lamas colheu para As Mulheres do meu País (1948-50), que correu de lés-a-lés, ao longo de dois anos. Numa abordagem de influência neo-realista, são todas elas mulheres do povo, em fotografias sem título – uma jovem mãe da Serra da Estrela, com o seu menino; o trabalho das tecedeiras do Azinhal; uma mulher peneirando, outra trabalhando na seca do bacalhau, duas empurrando os carros do carvão da mina do Pejão; um grupo, dançando umas com as outras, ao som do acordeão; uma mais idosa trazendo lenha para casa, a maternidade, o trabalho e encontro festivo com homens, preparando namoros – o que diz muito do que era o mundo da mulher do povo portuguesa à saída da última Guerra Mundial. Com pouca ou nenhuma escolaridade, sem televisão nem abertura de horizontes para fora do seu pequeno mundo. Ganhando o pão para si e para a família constituída ou a constituir, talvez emigrada ou já perdida. Na natureza, mas em preto e branco.
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Jovem mãe da Castanheira, serra da Estrela”, Pág. 161
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Duas camponesas do Covão da Ponte levam palha de centeio para a “corte”, depois da malha. (…)” (Região de Manteigas), Pág. 152
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Na Gafanha. Condução do bacalhau, já seco, para os armazens onde será escolhido e enfardado. As mulheres passam, em fila, num vai-vem que não pára (…)”, Pág. 211
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Raparigas da Gafanha, empregadas numa seca do bacalhau. Estas jovens do povo parece que se vão distanciando, no trajar e nos gostos, das suas mães. (…)”, Pág. 212
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Mulheres e jovens da Costa Nova. Uma é viúva e tem a seu cargo cinco filhos pequenos. (…)” Pág. 338
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova”, Pág. 372
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Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, 1948-1950, “Trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova”, Pág. 375
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O ideal assexuado e “imoral” de Imogen e tantas outras, em busca da “Arte”, não era o ideal de Maria Lamas, que jamais diria “não sou uma mulher, sou um fotógrafo”. Maria era uma mulher que lutava pela promoção das mulheres. As mulheres não eram “Deusas” eram pessoas que namoravam, trabalhavam, pariam, aleitavam e voltavam para o trabalho. Não é o corpo nu ou o sexo que lhe interessa mas a humanidade destas vidas a precisar de quem as guie para futuros menos duros e dependentes, melhores e mais felizes. O que interessa a Maria Lamas é o despertar das mulheres, o seu caminho e a sua luta – títulos dos 3 a 4 volumes de Confissões de Sílvia, “o seu livro”, Obra que era para ser a sua “Ressurreição” “ainda para além da morte” e ter publicação póstuma, 30 anos depois da sua morte, mas que outras mulheres, suas herdeiras, ‘confiscaram’. Apagada pela Censura e pela sua Obra ensaística, a romancista ficou intencionalmente esquecida. Não podendo publicar o “seu romance” auto-biográfico – centrado sobre a sua vida, porque “era a pessoa que melhor conhecia” – ficou a repórter, a contar a vida e os trabalhos das outras mulheres, as mulheres do seu povo.
Nas suas fotos, Maria Lamas faz falar o que queria – a dor, o esforço, o amor maternal e a solidão das mulheres num mundo de homens, nas suas fotos genericamente eliminados.
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Mas Maria Lamas queria ir muito mais além do que as mulheres do seu país. Bloqueada pelo proto-nazismo salazarista, que ainda estava virado para o Eixo, a hipótese de investigar a vida da Mulher Americana (1944), a convite da delegação dos Estados Unidos em Lisboa, entusiasma Maria, que tira o passaporte e prepara 4 meses de edições do Moda e, para seu espanto, choca com o veto irredutível de João Pereira da Rosa contra o pedido de uma licença sem vencimento, apesar do pedido de Maria a Ferreira de Castro que interceda, dado a sua reconhecida influência sobre o Diretor Editorial, à data muito interessado em apoiar e ser apoiado pelo Regime.
Maria Lamas, despedida de O Século, sem justa causa (1947) mas já internacionalizada pela FDIM (Federação Democrática Internacional das Mulheres), de que era co-refundadora (desde Ghent 1946) e pelo Conselho Mundial da Paz, para que fora convidada (1953), ensaia desde então recolher material para duas grandes reportagens, a primeira, sobre a Mulher Soviética (em Moscovo, Kiev, Arménia, Maria Lamas foi fotografada por N. Riacine), no final de 1953, e a última, sobre a Trabalhadora na China Comunista, percorrida de Norte a Sul, em 1956, tendo como pano de fundo o seu majestoso ensaio histórico em dois volumes que é A Mulher no Mundo (1952-54), Obra que a perseguição nacionalista tornou quase desapercebida.
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1953 | Maria Lamas | URSS | a repórter política entrevistando intelectuais e escritores
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1953 | Maria Lamas | a repórter política numa fábrica de lanifícios na União Soviética, estudando o trabalho das operárias
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1953 | Maria Lamas |Moscovo | a reporter política visita a um Jardim infantil, anexo a uma fábrica
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1953 | Maria Lamas | URSS | a repórter política em Kiev, com uma trabalhadora rural, dirigente de um sovhkoz
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1953 | Maria Lamas |URSS | a repórter e activista política, sendo homenageada por escritores
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1953 | URSS | Maria Lamas | a activista política numa recepção do Comité Antifascista das Mulheres Soviéticas, no Metrópole, em Moscovo
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1953 | Maria Lamas |URSS | a repórter política em entrevista a operárias de uma indústria química
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1953 | Maria Lamas |URSS |a repórter e activista política entrevista o dirigente de um Sovkhoz na Ucrânia
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1956 | Maria Lamas | Pequim | com Chu-En Lai, 1º Ministro da China comunista | vinda do Congresso de Ceilão e a caminho do Japão, ML permanece algumas semanas percorrendo diferentes cidades, de Norte a sul, preparando uma Grande Reportagem a editar em Paris, livro que a Revolução Cultural tornará, de imediato, obsoleto
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A Guerra Fria, a vida de exilada entregue a si própria, no seu minúsculo quarto de um pobre Hotel da Rue Cujas, no Quartier Latin, por onde passavam tantos outros exilados portugueses e sul-americanos, e a Revolução Cultural Maoísta desatualizaram os seus apontamentos de viagem, e da URSS apenas ficaram as fotografias da repórter em ação, tiradas por um fotógrafo russo, que as assina, as quais, saltando décadas, se irão ligar às fotografias com Cunhal e com a aeronauta Valentina Terechkhova, homenageada em Lisboa, em 1975.
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1975 | Maria Lamas | Com Álvaro Cunhal em comício público
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08.03.1975 | Lisboa | Maria Lamas | Recepção à astronauta soviética Valentina Tereshkova, no Pavilhão dos Desportos, Lisboa
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1975 | Maria Lamas | preside a um Congresso do MDM, de que foi fundadora e Presidente Honorária
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1976 | Maria Lamas | preside a um congresso do MDM
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1983 | Maria Lamas | com a secretária internacional da FDIM, que lhe veio entregar a Medalha Eugénie Cotton, Medalha de Honra pelos trabalhos de uma vida em prol da promoção das suas irmãs e companheiras
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José Gabriel Pereira Bastos
Dezembro de 2018, 35 anos depois da sua morte, 5 anos depois do ‘desaparecimento’ das Confissões de Sílvia, a sua Obra Literária póstuma, em 3 a 4 volumes, e da sua Correspondência Amorosa com Ferreira de Castro (1930-38).
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Bibliografia:
Maria Lamas, Para além do Amor, Lisboa: O Século.
Maria Lamas, A Ilha Verde, Lisboa: Editorial O Século
Maria Lamas, As Mulheres do meu País. Lisboa: Actuális,1948-50
Maria Lamas, As Mulheres no Mundo. Lisboa e Rio de Janeiro: Casa dos Estudantes, 1952
Rose Nery Nobre de Melo, “Maria Lamas”, in Mulheres portuguesas na resistência, Lisboa: Seara Nova, 1975, pp. 92-102.
Maria Antónia Fiadeiro, Maria Lamas – Biografia. Lisboa: Quetzal Editores, 2003.
José Neves, “O País das Mulheres de Maria Lamas”, in Comunismo e Nacionalismo em Portugal, Lisboa: Tinta da China, 2011, pp. 229-246.
José Gabriel Pereira Bastos, “A epopeia de Maria Lamas, a peregrina do ideal – uma heroína do século XX, in Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, 34, Colibri e FCSH, pp. 69-87.
José Gabriel Pereira Bastos, Maria Lamas, Mulher de Causas. Torres Novas, Município de Torres Novas, 2017
José Gabriel Pereira Bastos, “Maria Lamas, pensadora humanista, peregrina do ideal, mulher de causas, mãe-coragem dos exilados em Paris” e “Para uma cronologia de Maria Lamas”, in Maria Lamas | Mulheres, Paz, Liberdade, Catálogo da Exposição na Assembleia da República, 2017, pp. 11-13 e 83-92.
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Ben Sorensen, José Gabriel Pereira Bastos
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Agradeço de um modo muito especial a José Gabriel Pereira Bastos, Professor Associado com Agregação em Antropologia e Psicanálise, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (jubilado), neto e investigador da obra e atividade de sua avó, Maria Lamas, o texto que elaborou especialmente para o Fascínio da Fotografia, bem como as fotografias que cedeu, as quais são reprodução de fotografias dos Álbuns de Família, que integram o Espólio 28 da Biblioteca Nacional.
Este artigo poder-se-á considerar um ‘subsídio’ para uma Fotobiografia de Maria Lamas, obra sem dúvida importante para o conhecimento e a memória de Maria Lamas, haja quem esteja interessado em publicar.
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Pode conhecer mais sobre Maria Lamas no site de José Gabriel Pereira Bastos, aqui.
Pode ver no Fascínio da Fotografia sobre “As Mulheres do meu País”, aqui e sobre “Au féminin. Women Photographing Women 1849-2009”, aqui.
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Pingback: MARIA LAMAS, AS MULHERES DO MEU PAÍS, 1948, 2003 | FASCÍNIO DA FOTOGRAFIA
Pingback: JORGE CALADO, AU FÉMININ. WOMEN PHOTOGRAPHING WOMEN 1849-2009, 2009 | FASCÍNIO DA FOTOGRAFIA
Maravilhada ao ver e ler sobre a extraordinária mulher e lutadora Maria Lamas!!!
Obrigado. Foi uma mulher de ideais!
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