ERNESTO DE SOUSA, PARA O ESTUDO DA ESCULTURA PORTUGUESA, 1965, 1973
Último dia para visitar a exposição “A mão direita não sabe o que a esquerda anda a fazer…, homenagem a Ernesto de Sousa na Bienal de Vila Nova de Cerveira, onde se incluem imagens desta obra.
.
.
.
Ernesto de Sousa
Para o Estudo da Escultura Portuguesa
Fotografia e texto: Ernesto de Sousa
Porto: ECMA / 1965 (1.ª ed.)
Português / 25 x 31,5 cm / 59 + II págs. (?)
Cartonado
.

.
.
Lisboa: Livros Horizonte / Junho de 1973 (2.ª ed.)
Coleção Estudos de Arte, n.º 3
Português / 15,0 x 23,0 cm / 96 + LXXX págs (texto + fotografias)
Brochura
ISBN: 9789722402231
.

.
.
.
Poderia dizer, simplesmente, que no princípio deste álbum era… a imagem. Mas a verdade é que entre a imagem e a palavra parece haver a diferença que vai de nada a coisa nenhuma: a imagem esculpida não é silenciosa.”
Assim começa Ernesto de Sousa a Introdução a este livro, que reúne um conjunto de textos do autor (págs. 9 a 69, da 2.ª edição), “Catálogo e informações bibliográficas sobre as esculturas fotografadas” (págs. 71 a 79) e “Referências bibliográficas e notas ao texto” (págs 81 a 92) e as fotografias, antecedidas por este texto explicativo:
.

.
Ernesto de Sousa apresenta lado a lado imagens de uma mesma peça ou de peças distintas, mas de um mesmo motivo, destacando diferentes representações ou detalhes. Ao longo das imagens, textos explicam as origens das peças e alguns detalhes.
.
De acordo com o crítico José-Augusto França, esta obra constitui-se como “um dos primeiros trabalhos modernos na bibliografia da história da arte em Portugal” (Colóquio nº 38 – Abril 1966, p. 68-69) e é também uma importante reflexão, em 1965, sobre a fotografia e o seu uso (José Oliveira).
Sobre esta obra escreve Paula Pinto, em ArteCapital, a 2017.09.05, propósito da exposição “A mão direita não sabe o que a esquerda anda a fazer…” que é curadora, patente no castelo de Vila Nova de Cerveira, entre 15 de julho e 16 de setembro de 2017, integrada na XIX Bienal de Cerveira (no Fascínio da Fotografia aqui), onde se apresentam, entre outras, fotografias desta obra:
.
Contemporaneamente [final dos anos 50], e até ao início da rodagem de Dom Roberto (Agosto 1961), Ernesto publicou regularmente as suas fotografias numa série de 15 artigos que dedicou aos “Aspectos da Escultura em Portugal” na revista Seara Nova (entre Março 1959-Agosto 1961). Desta forma, começou por enumerar alguns exemplos da escultura portuguesa de expressão popular; domínio das artes que considerava histórica e esteticamente menos estudado. Assume assim à escala nacional o seu interesse pelo espaço social da arquitetura e pelo carácter discursivo da escultura que lhe está associada. Ernesto de Sousa incorporou estas fichas num estudo mais amplo apresentado na publicação Para o Estudo da Escultura Portuguesa (1965), um álbum onde o estudo imagético e a análise estética se complementam. Afirmando uma iconografia que não é objeto da crítica e da especialização historiográfica, Ernesto de Sousa consegue ser “visualmente polémico”. A arte popular permite- lhe explorar uma metodologia comparativa, associando livremente “memórias” e figuras de diferentes regiões e períodos históricos.
Neste estudo sobre a “significação profunda da escultura portuguesa”, Ernesto de Sousa dedica todo um capítulo ao “Problema visual: discussão sobre as virtudes e as características da interpretação e reprodução fotográfica nos estudos de escultura. Estética do fragmento. Iluminação e valores tácteis. Sugestões para a utilização da fotografia como método indispensável dos estudos iconográficos e estéticos. Comparativismo e visão polémica.” A fotografia permite-lhe identificar e simultaneamente descobrir, sem nunca perder a noção do potencial visual e cultura material que lhe é próprio. Dessa forma, evidencia a abstração da mediação estética –nomeadamente através da iluminação ou do enquadramento– tornando-a objecto explícito do seu trabalho intelectual. Imagem e discurso são conscientes da sua mediatização e consequentemente contemporâneos e autocríticos:
“Uma figura num capitel de igreja românica, não era apenas objecto de demorada contemplação e espanto para o camponês de Entre-Douro-e-Minho, era-lhe um valor íntimo, uma íntima maneira de ele ser no espaço e no tempo. Para nós tudo isso tem que ser reedificado segundo valores mais abstractos, na mediação estética ou filosófica da nossa modernidade; valores no entanto, não menos ardentes, quando reedificados no futuro.” (p.12)
Apesar da sua crítica intelectual apurada, os meios com que reproduz as obras tridimensionais são tecnicamente restritivos, mas coerentes. Embora a fotografia sofra um trabalho de reenquadramento na edição dos conteúdos que publica, ela nunca é apresentada enquanto a arte neutra da suposta “fotografia de estúdio”. Ernesto assume que a sua fotografia não é estática nem documental (transparente), mas subjetiva. O seu enquadramento relaciona-se diretamente com o suporte da publicação e com a sua mensagem e por essa mesma razão não deve ser pré-definido para a posteridade.
Contrariamente ao sucedido em publicações emblemáticas como Les voix du silence (1951) [5] ou Le Musée imaginaire de la sculpture mondiale (1952-54) de André Malraux, Ernesto de Sousa assume as mudanças de percepção provocadas pela fotografia de reprodução e as suas consequências epistemológicas. Enquanto André Malraux afirmava que em escultura o “fragmento é rei” e os enquadramentos fotográficos, as ampliações e as deslocações visuais serviam o seu discurso homogeneizador da história modernista, o arquivo de Ernesto de Sousa demonstra a consciente e crítica produção dos respectivos documentos visuais. Mesmo tratando-se de uma fotografia de reprodução, que muitas vezes é reenquadrada para servir uma função imediata na página impressa das publicações, o seu arquivo fotográfico transporta-nos por histórias paralelas de produção da imagem e por conseguinte, para novas plataformas de representação. [6]
Perante uma incompleta inventariação e deficiência documental, face aos raros estudos de ordem estética e à ausência de estudos comparativos, Ernesto de Sousa propôs-se prosseguir o levantamento sobre a “Escultura Portuguesa de expressão popular, histórica e atual”, concorrendo a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (1966-68). O arquivo fotográfico, fílmico, sonoro e bibliográfico que construiu em viagem pelo território português a partir de Outubro de 1966 permaneceu inédito e é na sua quase totalidade desconhecido.
[5] André Malraux, “Museum Without Walls”, em The Voices of Silence, New York: Doubleday & Company, Inc., 1953; trans. Stuart Gilbert, Garden City, NY: Grove Press, 1953 (Primeira edição Les Voix du silence, Paris: NRF, 1951/ Primeiro publicado no Paris Match em 1947).
[6] Acerca do uso de reproduções fotográficas por André Malraux ver Henri Zerner, “Malraux and the Power of Photography”, em Geraldine A. Johnson (ed.), Sculpture and Photography: Envisioning the Third Dimension, United Kingdom: Cambridge University Press, 1998, pp.116-130. Ver ainda Georges Didi-Huberman, L’Album de l’art à l’époque du “Musée imaginaire”, Paris: Hazan, 2013. Uma outra autora crítica do uso fotográfico de André Malraux é Mary Bergstein, “Introduction Essay”, em Helene E. Roberts (ed.), Art History through the Camera’s Lens, Gordon and Breach Publishers, 1995, pp.10-11.”
.
Destaco ainda as palavras de Ernesto de Sousa, sobre escultura, numa entrevista dada em 1965 a Fernando Tunhas:
O meu interesse pela escultura vai nele de par com o interesse por uma definição viva, estética e não etnográfica da nossa arte popular, e resulta em parte de uma óptica que ganhei com o cinema e a fotografia. Com efeito, a fotografia da escultura conduziu-me a uma atitude que raiava a da estética do fragmento ainda antes de ter lido os trabalhos de Croce e Berenson. Nesta matéria, a minha única preocupação é ser, como diria Rimbaud, absolutamente moderno. Mas o problema põe-se: como ser absolutamente moderno? Se se trata da nossa própria vivência é necessária uma descoberta de mim próprio. Eu sou original e único, mas esta certeza íntima é pré-reflexiva.”
.
.
.
Ernesto de Sousa, Para o Estudo da Escultura Portuguesa, 1973
.
.
.
O ensaio de Paula Pinto, in ArteCapital, 2017.09.05, a propósito da exposição “A mão direita não sabe o que a esquerda anda a fazer…”, aqui.
Atualizado em 17.08.2020.
.
Sobre a importância e a ação de Ernesto de Sousa, pode ler o artigo de Maria Manuela Restivo, “Em louvor das impurezas na historiografia da arte: Ernesto de Sousa e o estudo da escultura portuguesa”, publicado na revista MODOS, vol. 4, n.º 3 (2020), aqui.
Atualizado em 13.10.2020.
.
.
.