JORGE CALADO: SOBRE O CARÁCTER DA FOTOGRAFIA E A ANÁLISE DAS IMAGENS FOTOGRÁFICAS
Uma conferência de Jorge Calado, na Culturgest, em 4.2.2002
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Escrever sobre Jorge Calado, fez-me vir à memória uma conferência que Jorge Calado ‘conversou’ na Culturgest. Fui ver os apontamentos que tomei então, dia 4 de fevereiro de 2002.
Tomo a liberdade de os transcrever, com a devida vénia, dada a sua riqueza. O texto (ou notas) será, pois, devido a Jorge Calado, com os lapsos de anotação e transcrição da minha parte.
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A fotografia foi apresentada em 1839, tendo-se desenvolvido e expandido muito rapidamente.
No âmbito da história da arte, vivia-se o realismo, pelo que a fotografia, por excelência, era o expoente máximo: ela captava, todo o real que se encontrava no seu enquadramento.
Assim, com a fotografia a representar o realismo, a pintura ficou livre para seguir outros caminhos.
Com os tempos, a pintura toma a composição e o enquadramento da fotografia, e a fotografia sofre também influência da pintura.
Lessing, no séc. XVIII distinguiu as artes em dois grandes tipos: as artes do tempo, como a literatura e a música; e as artes do espaço, características da pintura e da escultura. (A literatura pode ser arte do espaço enquanto livro-objeto: 1ª edição, edição especial, etc).
A fotografia é a primeira arte que engloba estes dois conceitos de arte do tempo e arte do espaço. Para além de característica de um tempo, ela desenvolve-se no espaço (como uma tela), ocupando não só um espaço físico, como representando um espaço; para além da relação espaço/tempo: a velocidade = espaço / tempo (v=s/t), é um dos fatores e características da fotografia, pois influência a imagem.
O Caráter da fotografia
Mas qual é o caráter da fotografia? O que distingue a fotografia das outras artes? É certo que nos primórdios da fotografia estas diferenças eram mais acentuadas, hoje há uma maior “fusão” e interdependência entre a fotografia e as outras artes, que se influenciam mutuamente; as diferenças são atenuadas.
Este caráter é definido essencialmente por oito pontos.
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Produzida por uma máquina
O facto de ser produzida através de uma máquina, um engenho mecânico, e não diretamente pelo homem, é uma das principais diferenças relativamente às outras artes.
Foi este um dos aspetos que levou a haver resistência por parte de alguns em considerá-la como arte.
(Os fotogramas constituem uma exceção, dado que são impressos por projeção direta da luz sobre o papel fotográfico sobre o qual se colocaram os objetos a imprimir, sem necessidade de qualquer equipamento ótico.)
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Multiplicidade
De um original (negativo) posso obter um número quase infinito de cópias (“originais”). Esta é uma característica própria. (A serigrafia e a gravura permitem uma tiragem de várias provas, no entanto, a sua tiragem é limitada, pois a matriz perde qualidade à medida que se tiram cópias.)
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Manipulação
A imagem obtida pode ser manipulada, nomeadamente através de papéis de diferentes contrastes e texturas.
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Reenquadramento
Uma imagem fotográfica pode ser reenquadrada, dando origem a imagens completamente diferentes (ou com leitura completamente diferente) da original.
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Mistério
O imprevisto que fica na fotografia, a ignorância do que se vai encontrar na imagem, o involuntário que não se controla. Aquele detalhe que não se viu ao tirar, mas que fazendo parte da imagem, acaba por lhe dar uma leitura própria.
Quando perguntavam a Winogrand para que é que fotografava, ele respondia que “fotografava para ver o aspeto que as coisas têm depois de serem fotografadas”.
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Escala variável
A imagem pode ampliar-se no formato que se quiser, continuando a ser a mesma imagem. É certo que há um limite a partir do qual se perde a definição, no entanto o formato depende do espaço em que a imagem se insere (o fator escala).
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Fotografia como objecto
“Uma fotografia é um pedaço de papel”, diz Paulo Nozolino.
Isto faz da fotografia um objeto perfeitamente manuseável, pela sua dimensão e leveza (há casos particulares de imagens de grandes dimensões). É bidimensional. Diferente de uma pintura ou de uma escultura, por princípio pesada e volumosa, que não se vê pegando.
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O tempo
A fotografia é o tempo interrompido, o tempo congelado, o tempo aniquilado. É aquele instante que é preservado para sempre. Um instante que é roubado, que não volta.
A fotografia (objeto) envelhece mais rapidamente que a pintura ou a escultura.
O próprio vocabulário da fotografia tem a ver com o tempo: disparar: matar, tirar, subtrair. Qualquer coisa que não volta mais (é talvez com base neste sentido que o islão põe objeções à fotografia de pessoas).
As imagens de David Hockney, constituídas pela montagem de várias (dezenas de) fotografias, cada fragmento constituem um instante distinto. O conjunto é um tempo próprio, onde por vezes se reflete a mobilidade do observador.
A análise das imagens
As imagens podem ser vistas ou analisadas segundo vários critérios. Os critérios que apresentamos não são os únicos possíveis, são alguns. Uns são conscientes e definidos pelo fotógrafo, outros dependem de quem vê a imagem.
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Formato
Uma imagem pode ser retangular, sobre a horizontal ou sobre a vertical, ou quadrada. No início da Kodak, eram circulares…
O formato impõe, de alguma forma, uma leitura, reflete uma forma de ver. Perguntando ao António Júlio Duarte porque é que tira sempre quadrado, ele responde que “é para não ter problemas de escolher se é ao alto ou ao baixo”.
É certo que se pode sempre reenquadrar.
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David Hockney, The Desk, July 1st 1984
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As imagens de David Hockney são composições formadas por várias dezenas de fotografias assumindo formas diversas, sem contornos regulares e por vezes com vazios.
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Janelas / Espelhos
John Scharkowsky foi director do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque durante cerca de 30 anos. Em 1977, para a montagem de uma exposição de fotografia contemporânea, classificou as fotografias em dois grandes grupos: janelas e espelhos.
As janelas são as que apresentam um método de ver o que o rodeia e dos problemas do dia-a-dia; os espelhos, aquelas que são fotografia como modo de expressão de si próprio.
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Robert Frank, série The Americans, Parade, Hoboken, New Jersey, 1955
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Edward Weston, Pepper n.º 30, 1930
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As fotografias de Os Americanos (The Americans), de Robert Frank são um exemplo de janelas; os pimentos de Weston são um exemplo de espelho.
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A fotografia conta uma história
…ou então compete-nos inventar uma história ao ver a fotografia.
Observar a fotografia para ver o que ela nos deixou. “Ler uma fotografia como um romance policial”, diz Jorge Calado.
Dorothea Lange, no trabalho desenvolvido para a FSA em 1936 com outros fotógrafos, fez um levantamento da realidade do campo norte-americana, no âmbito do plano do New Deal de Roosevelt. Uma das suas imagens mais conhecidas – uma mãe com uma bebé ao colo e duas, de costas, a chorar sobre o seu ombro. A mãe chama-se Florence Thompson, tinha 6 filhos (as 3 raparigas da foto mais 3 rapazes), vivia de trabalho precário, habitava num carro, onde se deslocava. No dia em que a fotografia foi feita, vendeu os pneus do carro para comprar comida para os filhos… 40 anos depois, em 1979, o fotógrafo (???) localiza várias das pessoas que Dorothea Lange fotografou e fotografa-as atualmente, entre elas Florence Thompson, idosa, com as suas 3 filhas, no jardim da casa da mãe…
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Dorothea Lange, Florence Thompson, 1936
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?, Florence Thompson, 1979
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O preto e branco da fotografia
O descer às profundezas da terra e o subir no ar.
O que se mostra na parte iluminada da fotografia e o que se esconde na parte de sombra.
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Brassai, Madame Bijou, Paris, Montmartre, 1933
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Brassai fotografa Paris à noite, nos anos 30. Vejamos Madame Bijou, com os seus 70 anos: a parte de cima, iluminada, mostra-se sofisticada: maquilhada, com colares; a parte inferior, embora parcialmente iluminada, mas mais de sombra, mostra a degradação, a velhice: as pernas inchadas, as meias velhas…
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O studium e o punctum
Este olhar, defendido por Roland Barthes em A Câmara Clara, distingue o geral, o que se vê no geral quando se olha a fotografia (o studium), e o particular, aquele ponto que me atrai, que me chamou a atenção naquela imagem (o punctum).
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Robert Mapplethorpe, James Ford no banho, 1979
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Relativamente a James Ford no banho, de Mapplethorpe, diz Jorge Calado: “o copo de água prendeu-me a atenção. Um copo de água junto ao banho… Pode ser para lavar os dentes, ou para beber.” É o punctum daquela fotografia, para ele. “Quando encontrei o Mapplethorpe, perguntei-lhe. Ele diz que não o viu quando tirou a fotografia. É o mistério da fotografia.”
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Mostrar o impossível
A capacidade da fotografia de mostrar aquilo que é impossível ver: a fotografia estroboscópica, a macrofotografia, a fotografia de alta velocidade, ou a de galáxias distantes…
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Organização geométrica / estrutura da fotografia
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Henri-Cartier Bresson, Atrás da estação Saint Lazare, 1932
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As relações espaciais da fotografia, a posição relativa dos elementos, o “momento decisivo”, como define Henri-Cartier Bresson.
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Uma fotografia evoca fotografias passadas, gera novas fotografias
“A fotografia é como as cerejas…” (Jorge Calado).
Muitas fotografias surgem na sequência de outras, como reinterpretações, ou somente novos olhares sobre um mesmo espaço. Num tempo próximo ou em tempos distintos.
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Edward Steichen, Flatiron Building, 1904
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Berenice Abbott, Flatiron Building, 1930’s
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Por exemplo, o Flatiron Building, primeiro arranha-céus de Nova Iorque, entre a 5ª avenida e a Broadway, foi visto por Steichen (1904) através da névoa e com árvores próximas, numa imagem romântica; o olhar de Berenice Abbott uns 30 anos depois, é uma imagem dura, quase como um símbolo fálico…
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Bill Brandt, Perspective Nudes
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Eikoh Hosoe, O Abraço
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Perspective Nudes, de Bill Brandt e O Abraço, do japonês Eikoh Hosoe, foram fotografados na mesma ocasião, no entanto o Hosoe só publicou o seu trabalho 20 anos depois, pois entretanto Brandt havia publicado o seu, pelo que se iria referir que era inspirado naquele…
Para terminar, referindo-se à relação entre a fotografia e as outras artes, cita Man Ray: “Deve-se fotografar o que não se pode pintar e deve-se pintar o que não se pode fotografar.”
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