ADELINO MARQUES, (D)A ESPANTOSA REALIDADE DAS COISAS, 2022

Em exposição no Porto, na BC Galeria, de 04 a 29 de maio de 2024.

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Adelino Marques

(d)a espantosa realidade das coisas

Fotografia: Adelino Marques / Textos: Manuela Matos Monteiro, Maria Afonso, Alberto Caeiro

Gondomar: Edição do Autor / Maio . 2022 (1.ª ed.), Junho . 2022 (2.ª ed.), Março . 2023 (3.ª edição)

Português / 22,1 x 20, 5 cm / 70 págs., não numeradas

Capa dura em cartão cinza com janela com fotografia, impressão em relevo sem cor / 20 ex. (1.ª ed. 2.ª ed), 40 ex. (3.ª ed.) / A 3.ª edição integra nota biográfica do autor e de Maria Afonso.

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A espantosa realidade das cousas

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A espantosa realidade das cousas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada cousa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.

(…)

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Alberto Caeiro

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Adelino Marques reúne neste livro um conjunto de fotografias, ao longo de cinco capítulos, aberto cada um por um texto, em prosa poética, de Maria Afonso.

As imagens levam-nos à espantosa realidade das coisas, das coisas efémeras que nos rodeiam, que ficam gravadas na nossa memória e nos nossos sentidos, e que, por isso, são eternas.

Este livro é uma obra poética.

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Manuela Matos Monteiro escreve o texto de abertura:

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Poetizar o real

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No trabalho que Adelino Marques apresenta, a câmara é o meio de recolha da matéria-prima para criar registos expressivos que são manifestos da sua subjetividade. Entre a captura e o trabalho que o observador vê, há a mediação do autor que não tem intenção de documentar, ilustrar, descrever a realidade: acrescenta-lhe texturas, cores, sombras, luz, que combina numa composição original, numa realidade subjetiva, intencional e explicitamente construída. Transcende, portanto, a realidade captada acrescentando-lhe a sua sensibilidade que envolve emoções, afetos, história de vida, desejos, memórias, pensamentos latentes.

O domínio que o autor acolhe não é um modelo descritivo, mas antes o mundo apropriado pelos sentimentos e sensações expressas pela omissão de detalhes, pelo afagar de esquinas, pelo blur dos recortes, pelos espaços de invisibilidade, pelo atenuar de fronteiras entre figura e fundo, entre planos, entre centro e margens…

Presente está o mundo em que os quatro elementos se combinam – água, terra, ar, fogo. Presente está a flora, a fauna, o humano em diferentes declinações. É indiferente a localização no tempo e no espaço. Não importa se aquele escorrer de água é da laguna de Veneza ou do rio Minho, não importa se o barco é uma gôndola ou um caíque, se tem barqueiro ou não, se parte ou se chega.

Não importa saber se os moinhos são de Óbidos ou, até, os moinhos de D. Quixote. São moinhos com velas e parece ouvirmos o vento a movê-las. Importa que existem ali, a suscitar memórias que estão para lá da memória do autor. E é desta deslocalização que vive também este trabalho, porque o conteúdo é mais importante do que o contexto espacial ou temporal, até porque o tempo que pode ser convocado é um tempo pessoal, íntimo com cronologia própria. E essa é a transcendência que nos habita.

Quando o autor convoca Alberto Caeiro na sua referência à “espantosa realidade das coisas”, convoca-o como ponto de partida, não de chegada. A selfie que antecede a(s) série(s) é o seu autorretrato, é fractal afetada por todo um jogo pictural que transborda e atravessa as imagens. O que nos é dado não é a realidade das coisas, antes uma realidade construída, imersiva, que empaticamente nos envolve a percorrer um caminho apenas insinuado. Resta-nos aceitar o convite e, a partir daí, incluirmo-nos nos lugares mágicos que nos são propostos.

É em lugares assim, em que a errância é o modo de caminhar, que a poesia pode acontecer.

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Manuela Matos Monteiro, maio 2022

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Maria Afonso escreveu cinco textos. Este é o primeiro:

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Sempre soube da nascente, bem no alto, onde enormes pedras lisas se assemelham a mesas. Percorreu tantas vezes o caminho poeirento e pedregoso para poder sorver aquela frescura límpida a brotar da terra. Da ponte lembra a brevidade da luz entre os blocos de granito velho. Sempre fora antiga aquela ponte. Sabia que durante a noite pescadores entravam no rio com botas de borracha e cestos de verga. Como se pescar fosse um cerimonial a ocultar da luz. Hoje quase sucumbe ao toque aveludado da memória. No olhar guarda o sol a levantar os dias. Ainda não perdeu o jeito de fundear os dedos na solidão volúvel da água, de a sentir erodir o frio das pedras e saciar a fugacidade das margens. É nessa transparência que o seu sonho se alheia e um rastro dourado lhe incrusta a pele. Deita-se agora com as árvores na lassidão de um barco abandonado. Nesse esplendor acolhe a magnitude do silêncio. O vento cessa. Só a sombra cai líquida na intensidade desse assombro.

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O segundo regista:

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Sempre soube da nascente, bem no alto, onde enormes pedras lisas se assemelham a mesas. Percorreu tantas vezes o caminho poeirento e pedregoso para poder sorver aquela frescura límpida a brotar da terra. Da ponte lembra a brevidade da luz entre os blocos de granito velho. Sempre fora antiga aquela ponte. Sabia que durante a noite pescadores entravam no rio com botas de borracha e cestos de verga. Como se pescar fosse um cerimonial a ocultar da luz. Hoje quase sucumbe ao toque aveludado da memória. No olhar guarda o sol a levantar os dias. Ainda não perdeu o jeito de fundear os dedos na solidão volúvel da água, de a sentir erodir o frio das pedras e saciar a fugacidade das margens. É nessa transparência que o seu sonho se alheia e um rastro dourado lhe incrusta a pele. Deita-se agora com as árvores na lassidão de um barco abandonado. Nesse esplendor acolhe a magnitude do silêncio. O vento cessa. Só a sombra cai líquida na intensidade desse assombro.

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Adelino Marques, (d)A espantosa realidade das coisas, 2022

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A série “(d)A espantosa realidade das coisas”, de Adelino Marques, tem sido exposta em vários locais, nomeadamente em Gondomar, junho de 2022, na Guarda, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, de 23 de setembro a 4 de novembro de 2023; atualmente encontra-se no Porto, na BC Galeria (BC Óptica), na Rua Brito Capelo, 172, de 04 a 29 de maio de 2024.

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Adelino Marques

Nasceu em Gondomar, onde reside.

Iniciou o contacto com a fotografia no final dos anos 70, na Faculdade de Medicina do Porto, tendo sido um dos colaboradores do departamento de fotografia da Associação de Estudantes. Frequentou o curso livre de fotografia da Cooperativa Árvore no final dos anos 70 e posteriormente o curso profissional no Instituto Português de Fotografia – Porto.

Tem exposto regularmente o seu trabalho quer individual quer coletivamente, nomeadamente em Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Polónia, Finlândia, Chéquia, Ucrânia, Brasil e Estados Unidos da América.

Alguns dos seus trabalhos encontram-se publicados em revistas e livros e fazem parte de coleções particulares e institucionais.

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Pode conhecer melhor a obra de Adelino Marques no FF, aqui e no seu site, aqui.

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