AAVV, PORTUGAL LIVRE, 1974

Livro. Exposição em Lisboa, na Casa da Imprensa, de 11 de abril a 17 de maio de 2024.

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Portugal Livre. 20 fotógrafos de imprensa contam tudo sobre a revolução das flores

Fotografia: Abel Fonseca, Alberto Peixoto, Alfredo Cunha, António Xavier, Armando Vidal, Carlos Gil, Correia dos Santos, Eduardo Baião, Eduardo Gageiro, Fernando Baião, Francisco Ferreira, Inácio Ludgero, João Barreiro, José Antunes, José Tavares, Lobo Pimentel Jr., Miranda Castela, Novo Ribeiro, Rui Pacheco e Teresa Montserrat / Texto: Fernando Assis Pacheco, Adelino Gomes

Lisboa: Editorial O Século / Junho . 1974

Português /  20,5 x 27,4 cm  / 124 págs.

Capa mole

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Editado em junho de 1974, pouco mais de um mês após a revolução de 25 de abril, este livro é um “Documento fotográfico”, entre o dia da Revolução e o primeiro 1.º de Maio. A par com as fotografias de 20 “fotógrafos de imprensa”, breves textos dão uma explicação / enquadramento aos acontecimentos, apresentados cronologicamente.

Os fotógrafos estão identificados no início da obra, as fotografias não estão identificadas com os autores, o que se entende no espírito de coletivo que então se vivia. Mais que identificar a obra de cada um , era apresentar a História daqueles dias.

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Fernando Assis Pacheco escreve o primeiro texto do livro:

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GRÂNDOLA, VILA MORENA

TERRA DA FRATERNIDADE,

O POVO QUEM MAIS ORDENA,

DENTRO DE TI, Ó CIDADE…

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…Foi no meio de apupos e cantos populares que o regime de Marcelo Caetano se desmoronou no Largo do Carmo, em Lisboa, sob o sol claro de uma tarde de Abril. O herdeiro de Salazar não se meteu no blindado da fuga sem uma derradeira formalidade — transmitir o poder a pessoa idónea para que este não caísse na rua, como se afirma que afirmou a um interlocutor exasperado. Quanto à rua, essa, desdenhou todas as formalidades e logo ali armou a festa. Depois de tantos anos estava no seu direito.

Ter um povo, ou a parte sã de um povo, respondido à memória da violência somente com a alegria recém-descoberta, eis o que não acaba de maravilhar-me. Outros dias vieram depois, e já sabíamos que seriam ácidos e cortantes. Mas a explosão inicial continua nos meus ouvidos e nos meus olhos, intensíssima. 1385, 1640, 1910 foram assim? Permito-me duvidar.

Este álbum de fotografias, feito de efémero, conta a história do desmoronamento e suas sequelas imediatas, incluindo o trágico episódio da Rua António Maria Cardoso, quando a polícia política encurralada atirou a  matar sobre os manifestantes. Há rostos que são jubilosos até à perda da lucidez; crispados até à incredulidade; todos, porém, trazem impresso o fim de um tempo subtilmente entrançado com o começo de outro. Por isso o  blindado levando Marcelo Caetano saiu do Largo do Carmo despedido por breves punhadas no vidro grosso das janelas: era já o passado recente a caminho do esquecimento, passado apupado, empurrado entre cantos.

O mais belo flagrante delito da nossa vida fica registado nestas páginas, e não creio que o futuro venha a olhá-las distraidamente. Quem éramos, por onde andávamos no Abril da libertação? O que dissemos, por vezes mudos? Está tudo aqui.

Para isso foi preciso que um grupo de repórteres fotográficos se transmudasse, na rua, em “rua”, e não cedesse à exaustão para manter desperta a ciência do flagrante. Que arriscasse também a pele em várias ocasiões – as ocasiões da varanda alta e do vão de escada estratégico. Por fim, que dominasse a tentação da festa e, a quente, soubesse manter-se frio, frio e espontâneo, frio e flexível. Um bom repórter fotográfico, já sei, faz todos esses gestos naturalmente. Só que não abundam os bons repórteres fotográficos, por não abundarem os homens em disponibilidade contínua que eles têm de ser.

 Dormiu-se pouco nos dias seguintes ao 25 de Abril, mas o jornalista da máquina em riste foi dos que menos tempo repousou a cabeça num travesseiro. As redacções, sobre um rolo de fotografias revelado a correr, exigiam novo rolo história em acto acontecendo com estonteante velocidade. Às vezes não se falava sequer nas redacções, gritava-se destemperadamente. Um estímulo? À frieza, talvez. Pois talvez a frieza se alimente da extrema tensão e seja aí que o repórter fotográfico fixe o seu equilíbrio.

Entretanto, este álbum é um trabalho muito rico pela variedade. Oferece-nos fotografias de actualidade (e  algumas já históricas), outras englobáveis no capítulo da obra de arte (como fonte de emoção; raras embora), outras ainda que são autênticas fotografias-textos (fotografias-opiniões, fotografias-símbolos). As primeiras avultam logicamente: destinadas ao matutino, ao tablóide da tarde, ao semanário gráfico, à teletransmissão, assim se queimariam se os seus autores não houvessem juntado agora a produção.

O denominador comum é o da qualidade. Vejam-se peça a peça, em pormenor, e cotejem-se. Teríamos a ilusão de que nada foi deixado ao acaso, quando muita coisa foi improvisada ao décimo de segundo. Parece-me residir aqui a explicação mais clara do talento dos autores, rápidos e astutos e firmes de mão como aquele arquétipo do arpoador de que nos fala certa literatura do século XIX.

 Um dia, quando já não subsistir nenhum protagonista da aventura espantosa, gente para cujo dia-a-dia diferente trabalhámos todos, muitos de nós todos, enfim, lerão nestas fotografias o relato verídico (juro eu, que vi!) de como açaimámos 48 anos de miséria.

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Adelino Gomes assina o segundo texto:

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25 de Abril:

Uma jornada de liberdade

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Dois camaradas da secção portuguesa da BBC passavam férias em Istambul. Um dia, manhã cedo, conta um deles ao outro:

Eh pá, hoje tive um sonho bestialmente esquisito. Sonhei que havia um golpe de estado em Portugal. Saí de casa e vi-me a caminhar por uma estrada deserta. Ia vestido com a minha farda velha do exército. A certa altura pensei: E se for um golpe do Kaulza? Quem me garante que não é um golpe da extrema-direita? Mas nesse momento pensei que não havia problema porque estava a passar férias na Turquia.

E continuaram a falar na situacão portuguesa, como tantas vezes acontece a quem vive fora do País.

À mesma hora, em Lisboa, uma força da Escola Prática de Cavalaria de Santarém preparava-se para se dirigir ao Largo do Carmo, em cujo quartel, constava, se refugiara o presidente do conselho, Marcelo Caetano. Muito povo nas ruas da Baixa. Alguns jornalistas tinham conseguido ultrapassar a Barreira dos tanques e atiradores de Infantaria e subiam agora para uma viatura militar à descoberta, posta à sua disposição pelo comando da força que ocupava o Terreiro do Paço desde as cinco e trinta desse dia 25 de Abril de 1974.

Ia começar a aventura inesquecível de um grupo de trabalhadores da Imprensa que, incorporados numa coluna militar, reportariam o entusiasmo do povo e a coragem, generosidade, paciência e simpatia dos soldados, furriéis e alguns oficiais na gloriosa marcha sobre o Carmo. Aventura vivida desde há horas já por outros camaradas da Informação, que, um pouco por toda a cidade, registavam em blocos de notas, em máquinas fotográficas, nos gravadores, a queda, minuto a minuto, dos baluartes mais ferozes do mais retrógrado dos regimes políticos europeus. Os militares e o povo unidos, solidários, cooperantes, iriam ser heróis maiores dessa reportagem colectiva.

Não havia ângulos a preparar porque o entusiasmo e a beleza estavam em todos os rostos, em todas as ruas.  Não havia depoimentos a procurar porque os gritos de ‘Vitória’, ‘Vitória’ irrompiam de todas as gargantas, em todas as praças, em todas as esquinas, em todas as casas. E assim pelo dia fora, enquanto se acabavam os rolos, as fitas e as moedas de cinco tostões para o telefone. E populares forçavam as barreiras do exército em busca de garagens e postos de gasolina para os tanques quase vazios dos carros blindados que cercavam o Quartel do  Carmo. Soldados, populares e jornalistas do mesmo lado, esquecendo uns que estavam para combater, os outros  que deviam cuidar da sua segurança e os últimos que a caneta, a máquina fotográfica e o microfone são para gravar. Quantas frases belas para escrever, para filmar, para gravar. Quantas frases belas se não perderam, quantas fotos ficaram por tirar, quantas palavras se não gravaram porque os soldados combatiam e o povo combatia com os soldados e os jornalistas combatiam com os soldados e o povo e todos gritavam as mesmas palavras de liberdade e paz.

“Ganhámos”, foi o grito que ouvimos no Rossio pouco passava do meio-dia, e ainda no Carmo e em Belém, na Penha de França e em todas as António Maria Cardoso do País havia homens para defender Caetano. Em Caxias, em Peniche, no Tarrafal, centenas de prisioneiros pagavam ainda o preço da resistência antifascista. Soldados, irmãos dos soldados da libertação de Portugal, faziam morrer os combatentes africanos dos movimentos da libertação da Guiné, Angola e Moçambique. Centenas de milhares de portugueses continuaram a alienar à Europa “civilizada” a sua força de trabalho, única forma encontrada de sobrevivência.

Não estava realmente nada ganho, ao meio-dia daquele 25 de Abril. Mas é verdade também que muita coisa em poucas horas ficara já irremediavelmente para trás. Milhares de pessoas entoam no Rossio e pelo Chiado acima cantos e gritos de revolução e acompanham a coluna militar ao Largo do Carmo. Recordar-me-ei várias vezes da “Crónica de D. João l”, de Fernão Lopes. O povo vai ao Carmo porque a questão não é entre militares. A questão não é entre Spínola e Caetano. A questão pertence a todos e todos devem resolver (“para colher um cravo, meu general, desfolhou o nosso povo os pés nos tojos e nos cardos” — Mário Castrim). Por isso, no Carmo, são os populares que avisam a tropa da chegada, junto ao Teatro da Trindade, duma força da Guarda Republicana. São populares que fazem barricadas no meio da rua e os apupam e se dirigem depois, em manifestação, à sede da P.I.D.E./D.G.S., onde muitos seriam feridos e alguns mortos. (…)

A festa iria continuar pela noite fora com alegria e drama na António Maria Cardoso, em Caxias, em Peniche, na Praça do Rossio. Quando na rua surgia uma coluna militar, era o idílio perfeito. Inesquecível para mim a tarde do dia 26 na Praça do Rossio: em redor das viaturas do Exército, espalhados pela praça, militares conversavam com civis, longamente (…)

É que, mais do que um documento histórico, ele é o testemunho do que quiseram os que forçaram a História no 25 de Abril. Este livro foi feito com os que fizeram o 25 de Abril de Portugal: soldados e povo.

Repito, soldados e povo – “Para colher um cravo, meu general, desfolhou o nosso povo os pés nos tojos e cardos.”

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AAVV, Portugal Livre, 1974

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Fernando Negreira, Aspetos da exposição, 2024

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“O Livro Portugal Livre”, fotografias de: Abel Fonseca, Alberto Peixoto, Alfredo Cunha, António Xavier, Armando Vidal, Carlos Gil, Corrêa dos Santos, Eduardo Baião, Eduardo Gageiro, Fernando Baião, Francisco Ferreira, Inácio Ludgero, João Barreiro, José Antunes, José Tavares, Lobo Pimentel Jr., Miranda Castela, Novo Ribeiro, Rui Pacheco e Teresa Montserrat, numa organização da Casa da Imprensa e Sindicato de Jornalistas, em parceria com Associação CC11, está em exposição em Lisboa, na Casa da Imprensa, R. da Horta Seca, 20, de 11 de abril a 17 de maio de 2024.

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Uma conversa sobre o livro “Portugal Livre”, com Adelino Gomes, Teresa Monserrat, Alfredo Cunha e Inácio Ludgero tem lugar dia 08.05.2024, às 17:30.

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