JOSÉ ARSÉNIO, CONSTRUÇÃO NAVAL – ARTE COMO OFÍCIO DE VIDA, 2023

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José Arsénio

Construção Naval – Arte como ofício de vida

Fotografia: José Arsénio / Textos: António José Madeira, Armindo Neves Pombo, João Augusto Aldeia, José Arsénio

Sesimbra: Edição do Autor / Maio . 2023

Português / 24,6 x 24,6 cm / 144 pp.

Cartonado. Inclui marcador e um fascículo com a legenda das fotografias, glossário e bibliografia, agrafado, 21,1 x 21,0 cm, 24 pp.

ISBN: 9789729959844 

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Ainda nos anos 50 e 60 de mil e novecentos, eram muitos os estaleiros navais que ocupavam as margens do Tejo próximo da foz, bem como as povoações já banhadas pelo Atlântico. Os barcos eram essenciais para a pesca, então abundante e que ocupava muitos homens, que nos anos de 1980 sofreu grande corte, mas também para o transporte fluvial e marítimo, não só o transporte local, mas particularmente o abastecimento à cidade de Lisboa.

Com o desenvolvimento das vias de comunicação e a construção da ponte sobre o Tejo, hoje Ponte 25 de Abril, o transporte automóvel ficou facilitado, mais rápido e económico, o transporte marítimo e fluvial de proximidade terminou. A maior parte dos estaleiros navais fechou.

Neste livro, José Arsénio através de “uma compilação fotográfica, efetuada entre os anos de 2008 e 2015, sobre as atividades desenvolvidas por Mestres carpinteiros e oficiais de outras áreas da construção naval, nos Estaleiros Navais na Vila de Sesimbra e na Serração da Barrosinha”, em Alcácer do Sal, documentando, “quanto a esta temática, uma perspetiva, particular embora, do concelho de Sesimbra e lugares vizinhos.” As fotografias são acompanhadas de excertos de entrevistas realizadas no Porto Abrigo de Sesimbra e na Cidade de Setúbal, em 2022.

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José Arsénio, como introdução, escreve:

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o sal dos dias

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Hoje, quando falam de construção naval em madeira, uma sombra amarga turva-lhes as palavras tristes que naufragam abandonadas… faltam aprendizes interessados na arte de fazer dos sonhos realidade de futuro.

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Em atividade, porém, riem, deslizam como cobras pelas estreitas passagens no bojo necessitado das embarcações, rilham os dentes com arreganho perante a metálica obstinação ferrugenta das porcas e parafusos do guincho, batem pregos e cavilhas em esforço convicto do repuxar necessário, soldam, a meias, de rosto iluminado, robaletes no costado, erguem à altura da cinta as peças quentes que consolidarão a robustez da embarcação, calculam cortes e configurações das peças conformes ao lugar e função a desempenhar, acende-se-lhes um sorriso contido na marotice do engate, avivam letras na cara das embarcações como se fizessem um voto de esperança numa vida melhor, deixam a ponte leme e inspecionam o casco sabendo no presente um futuro cada vez menos radioso, aceitam e cativam o intruso fotógrafo que, menos avaro de tempo que eles, dobrados sobre as ferramentas com que moldam sonhos, lhes faça retratos da alma que põem na profissão, madrasta de amanhãs tão negros como o breu que veda as costuras do tabuado…  

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Como sesimbrense, José Arsénio justifica esta obra com a história da vila:

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Ainda o coração. Construção naval – arte como ofício de vida

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A história de Sesimbra foi escrita a par com as promessas do largo oceano e o sonho das suas gentes.

Sem erro de monta, podemos aceitar como seguro que a movimentação descendente das populações do Castelo, e a sua instalação na póvoa ribeirinha que a baía protegia, terá tido como chamariz maior a riqueza das águas de manso ondular e as isenções régias de dízimos a quem estivesse ligado à construção naval, aos apetrechos embarcados e ofício de mar.

Pelos séculos fora, as ruas da vila, os areais e os lugares com acesso à baía foram espaços propícios à construção de quase todos os tipos de embarcações em madeira: armações à valenciana, barcas do alto, traineiras, botes, chatas e aiolas.

(…)

Em Sesimbra, durante as últimas duas décadas do século passado, a realidade da integração europeia requereu a reconversão de velhas unidades e construção em madeira de novas de grande porte, para suportarem a procura e acomodação de pescado em mares cada vez mais longínquos: Gorringe, Marrocos, Ilhas dos Açores, Canárias e Mauritânia.

Também a inevitabilidade de introdução de novos materiais como a fibra de vidro e de metais, – o ferro, o inox e o alumínio – nas obras de manutenção, reparação e melhoramento das embarcações de madeira, conferindo-lhes maior resistência, proteção e durabilidade, implicou a reconversão e modernização dos estaleiros navais, assim como a aprendizagem, por parte dos operários e construtores navais, de novas técnicas e processos de beneficiação das embarcações e exigiu, como consequência direta, a utilização de novos tipos de ferramentas.

Este breve período de tempo correspondeu a um momento de pujança na construção naval em Sesimbra, mas, como a atividade de construção e reparação naval em Sesimbra está ligada, sobretudo, ao sector da pesca, as alterações e restrições impostas ao setor implicaram o abate de muitas embarcações e esta situação condenou as tripulações a procurarem meios de vida no contexto de novas atividades em terra.

Embora tenham diminuído a atividade, os estaleiros navais têm sabido adaptar-se às novas situações, mantendo a reparação da frota de Sesimbra e aceitando encomendas de outros estaleiros, seduzidos pela qualidade do trabalho aqui efetuado e pela excelência em todo o serviço prestado.

Nos três estaleiros navais, os mestres carpinteiros, os arrais, os homens do risco, os calafates, os soldadores, os “faz tudo” … apresentam-se ao trabalho, cansados de anos de duro labor, mas jovens de entusiasmo, pois se sabem capacitados por um saber de provas dadas.

Espero, por isso, que os documentos fotográficos e os textos que dão corpo a este novo título, construção naval – arte como ofício de vida, confirmem os seguintes objetivos:

– homenagear os homens que, em terra, acumulam saberes de corte e talhe de madeira para preservarem uma arte posta ao serviço de outros;

– documentar uma atividade que orgulha a comunidade sesimbrense;

– sustentar, em imagens, momentos de uma prática de raiz milenar que se alimenta na forma de ser e de estar de uma comunidade que resiste.

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José Arsénio, Construção Naval – arte como ofício de vida, 2008 – 2015

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João Augusto Aldeia elabora uma nota histórica, acompanhada de algumas fotografias antigas:

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Tempos novos, saberes antigos
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Sendo muito antiga em Sesimbra a prática contínua das atividades da pesca e da navegação marítima – no primeiro caso, documentada desde o início da nacionalidade – são no entanto escassas as referências à atividade de construção naval e os registos paroquiais de nascimentos, casamentos e óbitos, prolíferos nas referências a outras profissões, revelam-se avaros na identificação de carpinteiros, sendo que destes apenas uma parte se dedicaria à construção de embarcações.

No entanto, a ocorrência de dois tipos de embarcação próprios de Sesimbra – a barca de pesca do alto e a aiola – revelam não só a existência duma comunidade local de “carpinteiros de machado” (designação tradicional da profissão vocacionada para a construção de embarcações) como, sobretudo, da capacidade para inovar e conceber novos tipos de embarcação, ainda que, no segundo caso, se trate da adaptação às nossas águas e às nossas técnicas de pesca da “iole”, embarcação auxiliar dos navios veleiros que percorriam toda a costa europeia.

As embarcações tradicionais, movidas à vela e/ou a remos, tinham de ser altamente eficientes no sulcar das águas: eficiência que se associava à beleza das suas formas. Infelizmente, ao longo do século XX, a construção de embarcações de pesca sofreu uma evolução técnica que rompeu com as formas tradicionais; construídas com recurso a novos materiais (como a fibra de vidro) e movidas por motores de potência e fiabilidade crescente, as embarcações de pesca, de todas as dimensões, assumem atualmente formas que poderão ser menos eficientes mas cujo défice de hidrodinamismo é compensado pelas potentes motorizações.

Por outro lado, a evolução tecnológica e da organização social e económica traduziu-se numa especialização na cadeia produtiva, marginalizando os saberes artesanais que dominavam o fabrico dos artefactos – pequenos ou grandes – desde a sua conceção mental até ao seu acabamento. O sector da construção naval também sofreu este choque: deixou de ser possível acumular num só indivíduo o saber geracional que permitia imaginar uma embarcação, modelá-la, desenhá-la, escolher as matérias-primas, riscar-lhes as peças, cortá-las, encaixá-las… resultando todo esse labor numa bela embarcação pronta a sulcar as águas. (…)

Acontece também que, para podermos lamentar o anunciado desaparecimento dos saberes artesanais, temos de ignorar, ou pelo menos desvalorizar, as difíceis condições de vida em que esse modelo de produção prosperou, nomeadamente para a maioria dos artesãos, já que o saber completo só estava reservado aos Mestres, devidamente protegidos pelo corporativismo das artes e ofícios que caracterizava esse modelo produtivo.

Noutros tempos, a construção naval em Sesimbra esteve intimamente associada, quer à pesca, quer ao comércio marítimo; este último esvaneceu-se há muito e, com ele, alguns dos tipos de embarcações que aqui prosperaram, como a magnífica canoa da picada: algo de que não restou nem a nostalgia, porque até a sua memória se eclipsou na comunidade. Presentemente é a pesca que se encontra sob ameaça, porque a pressão sobre os recursos piscícolas está a levar ao esgotamento das espécies, sendo as quotas de pesca um reflexo dum problema aparentemente insolúvel.

(…)

Vale a pena questionar: embora sabendo que os novos navios exigem novas técnicas, não seria possível preservar os saberes antigos? Não seria possível que continuassem a existir em Sesimbra carpinteiros de machado, ocupados, ainda que como passatempo, na construção de aiolas, botes, barcas e canoas? Sem dúvida que sim, mas isso exigiria uma soma de vontades individuais que encontramos escassamente nas sociedades modernas e ainda menos numa pequena terra como Sesimbra, que chora o que perde mas não lhe lança a mão. Ao menos, ficam as imagens do José Arsénio que, numa técnica fotográfica apurada, tem retratado com paixão um universo de práticas sociais e técnicas ancestrais em desvanecimento.

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António José Madeira partilha:

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Silêncio inquieto | Contexto | Mar e sonho a todo o tempo

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Da antiquíssima póvoa ribeirinha de Sesimbra avistou-se, sempre, o sonho que se acoitava para lá do horizonte. Certamente aqui terão chegado argonautas de outros povos e nações, também descontentes com as acanhadas fronteiras do exíguo mundo em que viviam e lhes tolhia ânsias de liberdade. Esta febre de conhecer e experienciar contaminou, por sua vez, e irremediavelmente os habitantes que a baía acolhia e protegia. O convívio com quem chega trouxe informação feita conhecimento manifestado, pelos tempos fora, nos aparelhos flutuantes que por todos os tempos e sobre todas as ondas lançaram.

Assim se constrói quase toda a história humana, às vezes, sem conquistadores nem conquistados, apenas emancipadores, comerciantes de saberes, fabricantes de vidas e agricultores de memórias e culturas.

Neste fundo, onde o mar recebia as águas das ribeiras que escorriam encostas abaixo e a estreita faixa de terra servia de chão a quem descia da fortaleza medieval, a vida venceu: achados arqueológicos atestam a presença de povos da bacia mediterrânica, assim como das costas europeias bem a norte. É, todavia, mais recente – cerca de oito séculos – a atribuição de forais, cartas, alvarás de concessões, isenções de dízimos e permissões concedidas aos habitantes deste território para o exercício de construção naval com madeiras, ferragens e cordames para aparelhamento das embarcações e transação do pescado.

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Se, como diz o poeta, o mar é o caminho para casa, saibamos deixar os passos marcados a fogo na pele das ondas. (…) A ilusão da vida cada vez mais se escreve nos ecrãs que florescem na palma da mão. Ah! Como a modernidade se sustenta cada vez menos do concreto gesto que nos põe o peixe na mesa! Faz mais sentido a caverna de uma embarcação que a máscara virtual que cobre os dias. Esperemos que dizer fotografia não seja o ténue rumorejar de uma … arte como ofício de vida a cobrir-nos o olhar.      

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José Arsénio, Construção Naval – Arte como ofício de vida, 2023

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“Construção Naval – Arte como ofício de vida”, de José Arsénio, foi apresentado na Fortaleza de Sesimbra, no Terreiro do Poço, em 28 de maio de 2023.

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José Arsénio, Autorretrato

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José Manuel Arsénio nasceu em Sesimbra em 1957.

Cursou fotografia na Associação Portuguesa de Arte Fotográfica (APAF) nos anos 80.

Vive presentemente na Maçã, aldeia do Concelho de Sesimbra, e dedica todo o seu tempo à divulgação da arte fotográfica.

Fotógrafo freelancer, tem desenvolvido trabalhos nas áreas do património natural, arquitetónico e preservação do meio ambiente.

O modo de ser e estar das comunidades, onde o elemento humano é o valor essencial, tem contado com a sua atenção.

Desde 1980 que expõe trabalho individualmente e colabora em exposições coletivas.

É autor fotográfico e editor de “Sesimbra entre o mar e o campo a Pérola da costa azul”, “Gentes do Mar” e “Imagens de Fé”.

Autor fotográfico, produtor e coordenador do projeto “Patrimónios”, composto por três brochuras temáticas, “Vila de Sesimbra ”, “Castelo de Sesimbra ”, “Cabo Espichel ” e do livro “Sesimbra a essência dos lugares ”, com edição da Câmara Municipal de Sesimbra.

Autor fotográfico e editor de “Sesimbra … tecida de Luz ” e “Sesimbra… três Freguesias um concelho”, os seus últimos trabalhos fotográficos, com edição de junho de 2013 e junho de 2019.

Fundou, com um grupo de amigos fotógrafos, a Associação SEFASesimbra Expressão Fotográfica Associação, ativa entre 2015 e 2018, cujo objetivo era a divulgação da fotografia como forma de expressão e, nesse princípio, foram realizadas várias exposições e levadas a cabo várias atividades.

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Sobre este projeto no FF, aqui.

Cortesia do Autor.

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