ANTÓNIO BRACONS, CÂNTICO NEGRO [JOSÉ RÉGIO], 2017

Dia 22 completam-se 50 anos da morte de José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira (Vila do Conde, 17 de setembro de 1901 – Vila do Conde, 22 de dezembro de 1969)

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Cântico negro

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“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

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A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

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Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

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Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

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Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

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Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

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Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

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Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

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Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

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Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

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José Régio, in “Poemas de Deus e do Diabo”

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José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira (Vila do Conde, 17 de setembro de 1901 – Vila do Conde, 22 de dezembro de 1969). Licenciado em Letras pela Universidade de Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre.

Régio foi escritor, poeta, dramaturgo, romancista, novelista, contista, ensaísta, cronista, crítico, autor de diário, memorialista, epistológrafo e historiador da literatura portuguesa, para além de desenhador, pintor, e grande conhecedor e colecionador de arte sacra e popular. Foi um dos fundadores da revista literária “Presença”, e o seu principal animador.

Foi como poeta que primeiramente se impôs: com o seu primeiro livro, “Poemas de Deus e do Diabo” (1925), apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante si mesmo.

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Fotografia: António Bracons, série “Por ali”, Lisboa, Palácio Nacional da Ajuda, 2017.

Quando vi esta ‘sinalética’, de imediato pensei neste poema.

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