ELOGIO DO QUOTIDIANO – DANIEL BLAUFUKS, TENTATIVA DE ESGOTAMENTO / ATTEMPTING EXHAUSTION, 2009 – 2016

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Daniel Blaufuks

Tentativa de esgotamento / Attempting Exhaustion

Fotografia: Daniel Blaufuks

Lisboa: Galeria Vera Cortês / Nov. 2016

Português e inglês (sem texto) / 29,0 x 40,8 / 16 págs não numeradas

Jornal de exposição

Dobrado ao meio / Impressão offset, a cores, cada fólio 8 x 5 fotografias, identificação no canto inferior esquerdo: “Daniel Blaufuks, Tentativa de esgotamento / Attempting Exhaustion, Galeria Vera Cortés, Nov 2016 – Jan 2017”

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ELOGIO DO QUOTIDIANO

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A mesa da cozinha é de madeira.

A mesa da cozinha está encostada à parede, junto à janela.

A janela é em caixilharia de ferro, que divide o vão em vários vidros. A casa já é antiga.

Os vidros têm uma película que filtra a luz e não deixa ver para fora. Nem de fora para dentro.

A luz que entra é coada. Quando está sol, é mais intensa e o calor sente-se. Quando está frio, o frio faz-se sentir.

A luz que entra faz lembrar a da pintura de Johannes Vermeer. O seu estúdio tinha também grandes panos de janelas, de caixilhos de ferro e vidros pequenos. E a luz que entrava era a iluminava e representava nas suas pinturas.

A mesa da cozinha tem pois uma cor e uma luz especial, ali, junto à janela.

A mesa da cozinha é o espaço das refeições, por vezes, o espaço da leitura, ou do trabalho.

Está a tigela dos cereais do pequeno-almoço.

Estão os pratos e os copos e os talheres para o almoço.

Está a fruteira, com maçãs ou laranjas ou limões ou o que há.

Está o melão ou os limões enquanto aguardam a arrumação.

Está o livro aberto, na pausa de levantar e da fotografia.

Está o candeeiro e o bloco de notas e a caneta

Está a jarra com flores.

Está o copo com flores.

Está a luz que entra pela janela pelas cortinas entreabertas.

Está a sombra do candeeiro sobre a mesa.

Está a toalha colorida, de tons vermelhos.

Está hoje a toalha de azuis e verdes…

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Poderia continuar indefinidamente.

A mesa da cozinha é a mesa da cozinha e as suas utilizações são múltiplas.

E sobre a mesa da cozinha…

E o pormenor da janela, aberta ou fechada, junto à mesa da cozinha.

E o detalhe do cortinado a roçar a mesa da cozinha…

A mesa da cozinha é também a janela, é também o cortinado…

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A mesa da cozinha de Blaufuks tem aquela janela e aquela luz que lhe dá um relevo especial.

Se estivesse mais no interior, talvez não merecesse qualquer destaque, mas aquela luz – e aquela janela – dão-lhe um sabor próprio, único, uma poética que centra nela o olhar e o coração.

Talvez também por isso, quando lhe falam em substituir a janela por outra, mais confortável, com proteção térmica, vidro duplo, em alumínio, vidros amplos, Blaufuks não quer e fecha a porta. Aquela mesa da cozinha é aquela mesa da cozinha porque tem aquela janela da cozinha, que dá aquela luz à cozinha… Por isso é que aquela mesa da cozinha é vivida como é vivida.

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Ao longo de sete anos Blaufuks fotografou a mesa da cozinha: a mesa e o que está sobre ela e a janela. De frente, de um lado ou de outro, mais de acima ou mais de baixo… Slide, filme, polaroid, digital… Uma multiplicidade de formatos, de modos.

Há como que uma tentativa de esgotamento de olhar a mesa da cozinha. Não se esgota o olhar sobre a mesa da cozinha.

A exposição mostra algumas imagens da mesa da cozinha. E diversos detalhes.

O jornal da exposição contempla 320 fotografias, recortadas no formato quadrado.

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Há assim um conjunto de imagens centrado num mesmo tema ou objeto, mas com uma riqueza de matizes, formas, cores, ângulos, texturas, sabores, luzes, padrões…

A mesa da cozinha, não podemos esquecer, é um fragmento da casa. E, portanto, este olhar sobre a mesa da cozinha é um retrato sobre quem vive na casa e como vive.

O registo fotográfico, diria quase obsessivo, da mesa da cozinha, cria assim uma história em imagens de uma riqueza fascinante, um registo do quotidiano, um registo da vivência pessoal e familiar, como que um diário ou agenda (Blaufuks tem a data e a hora de cada fotografia).

A mesa da cozinha é um fragmento do quotidiano, da vida de todos os dias, tornou-se esse registo, um ensaio sobre o quotidiano.

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Blaufuks expõe em diferentes suportes, assumindo, portanto, todos eles como suporte da fotografia e forma de arte: a fotografia, impressa a jato de tinta, emoldurada, vários formatos (1 a 19 e 21 a 25), a apresentação de dispositivos em caixa de luz (“Dia positivo (tentativa de esgotamento) I / Caixa de luz com diapositivos / 10 x 24 x 32 cm”, n.º 20) ou através de um conjunto de visores de slides, viewmaster, etc (“Panorama / Estrutura de metal com visores de diapositivos / 46 x 18 x 22 cm”, n.º 26) e o próprio jornal da exposição (“Jornal / Impressão offset, 29 x 41 cm “n.º 27).

Assim, o jornal da exposição, mais que ‘complemento’ da “folha de sala” ou publicação da exposição, torna-se uma peça da exposição, exposta (em pilha, no chão, devidamente identificada na folha de sala), uma peça que qualquer um pode levar.

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António Bracons, Aspetos da exposição.

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Na folha de sala, Blaufuks explica a génese e o desenvolvimento do projeto num texto datado de outubro de 2016:

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Tentativa de esgotamento

Entre a sexta-feira de 18 e o domingo de 20 de Outubro de 1974, o escritor Georges Perec sentou-se, por várias vezes, num café na praça de Saint-Sulpice em Paris e apontou minuciosamente tudo o que se atravessou no seu campo de visão, entre pessoas conhecidas e desconhecidas, números de autocarros, cães, funerais, e o que consumiu.

Essas anotações “do que geralmente não se anota, do que não se nota, do que não tem importância, do que se passa quando não se passa nada, salvo o tempo….” serviram de base para o livro Tentativa de esgotamento de um local parisiense, uma obra sobre o infra-ordinário com óbvias ligações à fotografia contemporânea.

Entre 2009 e 2016 fotografei uma mesa e a janela na minha cozinha em Lisboa. Primeiro atraído pelo silêncio, depois pela forma como a luz caía nos objectos e em seguida pela sua composição geométrica, fui reparando mais e mais em como tudo se repetia e não se repetia devido às ligeiras e quase invisíveis diferenças do dia-a-dia, da altura do ano e das condições meteorológicas.

Ao contrário de Perec no café Tabac em Paris, nada, mas mesmo nada, se passava, de facto, diante das janelas luminosas mas opacas, enquanto sobre a mesa os objectos se iam alterando consoante os dias e as necessidades: pratos, copos, jornais, revistas, flores, guardanapos, livros, frutas da época, papéis, instrumentos, mapas. Lentamente a cozinha, devido ao recolhimento em relação ao mundo exterior, tinha-se transformado para mim num local de refúgio, de abrigo, de pensamento, de apaziguamento.

A luz suspensa lembrava-me por vezes, claro que modestamente, a de uma igreja ou a de uma mesquita em que estive uma vez no Irão. Os dias passavam e eu fotografava de quando em quando, sem qualquer intenção para além do próprio acto de fotografar. Cá dentro tudo parecia igual enquanto lá fora o mundo mudava, um amigo morria, um governo caía, um livro saía, uma guerra aniquilava, uma bomba explodia. Houve um dia em que o mundo tentou entrar, quando um empreiteiro bateu à porta e avisou de que o proprietário gostaria de trocar a janela por uma moderna com vidros grandes que deixariam entrar mais luz e menos frio e com a qual eu seria muito mais feliz. Ainda ele falava e já eu tinha fechado a porta. Continuei a fotografar, comecei a experimentar com outros tipos de aparelho e com outros resultados.

Cor, preto e branco, negativo, positivo, digital, película, instantâneo. Algures encontrei uma fotografia antiga dos meus bisavós refugiados em volta de outra mesa em frente de uma janela semelhante. Também eles se tinham banhado nesta luz, porque, sim, a luz era a mesma.

Fotografando diariamente comecei a aperceber-me que, por mais que fotografasse, as imagens nunca seriam capazes de reproduzir o todo deste minúsculo espaço.

E mesmo que esse todo fosse traduzido em idênticas horas de filmagem, faltaria então o tempo para as rever, da mesma forma que Funes não tinha tempo para viver por causa da sua memória prodigiosa de um só dia apenas. Aliás, cada fotografia traduz a realidade à sua maneira: ligeiras alterações de cor no digital, sobre-exposições de luz no diapositivo, cinzentos granulosos no preto e branco e fascinantes reações químicas no instantâneo. O próprio formato escolhido, ou a lente selecionada, o filme ou tratamento, representa cada um uma espécie de verdade diferente. Mas o ver lentamente-rapidamente aparecer a imagem à minha frente, na minha mão, em vez do imediatismo do ecrã digital, provoca igualmente uma relação inteiramente diversa com o objecto fotografado, dando lugar a um contacto físico, o manuseamento do objecto-fotografia, e ao erro, um eco distante dos muitos erros que eram cometidos no laboratório fotográfico quando a fotografia ainda se assemelhava à alquimia. Outras destas imagens precisaram de ser reveladas nessa escuridão fantasmagórica que costumava acompanhar todo o processo fotográfico, mas que, tal como a beleza do erro e o desvanecimento da imagem, faz agora parte de um passado analógico.

No digital não há defeito, a repetição torna-se desnecessária, nada se perde, nada se transforma nem nada morre, porque, na realidade, não existe e é apenas luz informática.

Não é palpável nem é táctil, a fotografia como objecto apenas já só existe (barata) na feira da ladra ou (cara) na galeria de arte.

Fotografei mais e mais. Senti que num mundo inundado de imagens das mais dispersas geografias, fazia algum sentido eu fotografar sempre no mesmo sítio e sempre a mesma fotografia. Mas o local escolhido revelou a sua enorme ingratidão. A tentativa não passa de uma tentativa e a minha janela é tão inesgotável como o café de Perec. Nada mexe enquanto tudo mexe. As centenas de fotografias apenas retratam uma ínfima parcela de tempo dentro do tempo, um fragmento microscópico sem importância num fluxo constante. Uma altura chegará em que eu não estarei cá e algum proprietário mudará finalmente a janela. Então, sim, jorrará infinitamente uma outra luz. Alguém será talvez igualmente feliz aqui, nesse outro tempo que não é o nosso tempo.”

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Daniel Blaufuks, Tentativa de esgotamento / Attempting Exhaustion, Galeria Vera Cortês, 2016 (Jornal)

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“Tentativa de esgotamento”, de Daniel Blaufuks, esteve em exposição na Galeria Vera Cortês, em Lisboa, de 26 de novembro de 2016 a 14 de janeiro de 2017.

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O Prémio Artes Plásticas 2016 da AICA 2015+2016 foi atribuído a Daniel Blaufuks pelas exposições Léxico, realizada na Bienal de Vila Franca de Xira (aqui), e esta, Tentativa de Esgotamento, realizada na Galeria Vera Cortês, em Lisboa.

2017.06.12

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Sobre o livro desta série no FF, Attempting Exhaustion, aqui.

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